Centro de Estudos Sociais
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22-08-2013        Visão

Às vezes pergunto-me por que tenho dedicado tanto trabalho ao estudo dos tribunais nos últimos quarenta anos. Tenho estudado os tribunais não só em Portugal como em outros países e, no projeto que actualmente realizo, financiado pelo European Resarch Council, coordeno uma equipa de investigação internacional dedicada, entre outros temas, ao estudo do que designo por “constitucionalismo transformador”, a ocorrência em vários países de uma nova visibilidade e centralidade da legalidade constitucional, quer por via da promulgação de novas Constituições, quer por via do recurso aos tribunais constitucionais ou com funções constitucionais em situações consideradas decisivas para a sobrevivência ou para a qualidade da democracia. Em retrospecto, o meu interesse pelos tribunais decorreu de uma perplexidade criativa sobre o papel dos tribunais na consolidação ou, pelo contrário, na fragilização da democracia numa época em que a utopia de uma sociedade socialista ia sendo substituída pela ideia de um “capitalismo democrático”: a consagração constitucional de um vasto conjunto de direitos sociais e económicos capaz de garantir à maioria da população uma medida de bem-estar suficientemente significativa para mostrar que a democracia não era um governo das elites, exercido pelas elites para benefício exclusivo das elites.

Esta garantia dependia da efectividade do direito e dos direitos e esta, em última instância, dos tribunais encarregados de a fazer valer. Estariam os tribunais à altura do encargo? Que indicações se poderiam retirar da história jurídica e judicial moderna? Para mim, o instigante destas perguntas residia numa intuição teórica e numa condição contextual. A intuição teórica dizia-me serem simplistas as duas respostas que então dominavam o campo da sociologia jurídica sobre o papel dos tribunais nas sociedades contemporâneas. Uma era que, sendo essas sociedades capitalistas, os tribunais acabariam sempre por decidir a favor das classes dominantes; a outra era que a independência dos tribunais não nos permitia pôr sequer em causa a vontade e a capacidade dos tribunais para garantirem a efectividade dos direitos, mesmo contra os interesses dominantes. Nem uma determinação nem outra me pareciam convincentes. Daí o interesse em analisar o desempenho concreto dos tribunais em diferentes contextos. E o contexto português era particularmente desafiador. Por um lado, Portugal acabava de sair de 48 anos de ditadura em que um punhado de famílias oligárquicas, benzidas por uma Igreja católica conservadora, mantivera ao seu serviço, não apenas um ditador (que ora servia ora mandava para melhor servir), mas também um aparelho de Estado excludente e autoritário de que os tribunais tinham sido um apêndice apagado (apenas brilhando no zelo do tribunal plenário ao julgar os opositores políticos). Por outro lado, por um breve período (o Verão quente de 1975), Portugal convertera o momento luminoso da Revolução de Abril na anunciação de um projecto socialista que levou a sociedade a uma polarização sem precedentes. A despolarização só foi possível, em 25 de Novembro de 1975, mediante um acordo que, não só garantiu a continuidade e a plena legalidade do partido que mais fortemente advogara a sociedade socialista (PCP), como propôs uma Constituição avançada assente num modelo de coesão social pautado por um conjunto robusto de direitos sociais e económicos (Constituição de 1976). O impulso socializante era então tão forte que o “capitalismo democrático” que se começava a construir foi designado durante uns anos como socialismo e as forças políticas de direita (hoje no poder), como socialistas.

Ninguém de boa fé pode pôr em causa os benefícios que o modelo de coesão social então definido nos trouxe. Hoje, apostado em concretizar a maior transferência de riqueza de que há memória no Portugal moderno - das maiorias empobrecidadas para uma pequena minoria nunca tão rica como hoje - o governo quer pôr fim a esse modelo, mesmo sabendo que daí pode resultar o caos. A Constituição que temos defendeu-nos até agora do caos. Para nos continuar a defender tem, ela própria, de ser defendida.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos



 
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