Talvez por ser uma categoria social que anda na boca de tanta gente - uns porque antevêem a sua queda iminente, outros porque aplaudem o seu apogeu -, a "classe média" é cada vez mais difícil de definir. Durante muito tempo, e em especial no Ocidente, perante a terciarização das economias e o crescimento do funcionalismo público, criou-se a ideia de que a classe média (assalariada) era sinónimo de trabalho "limpo" (os célebres colarinhos brancos), familiaridade com as chefias, estabilidade de emprego e programação de carreiras. Sobretudo as correntes de pensamento influenciadas pela vulgata marxista e a sua grande narrativa da classe operária, ao mesmo tempo que construíram o mito do proletariado redentor, criaram a ideia de uma (igualmente mítica) classe média "instalada" e monolítica, ou seja, caracterizada pelo individualismo, o consumismo e a adesão incondicional ao statu quo capitalista.
Não sendo este o lugar para uma análise rigorosa do tema - cf. Renato Carmo (org.), Portugal, Uma Sociedade de Classes; e Elísio Estanque, Classe Média. Ascensão e Declínio -, é importante notar que se trata de terreno movediço. No mundo atual, com a profissão e o emprego a perderem centralidade e a própria crise estrutural a indiciar ruturas iminentes no sistema capitalista, assiste-se a uma rápida recomposição da estrutura das classes, o que requer um outro olhar sobre o conceito de classe média. Não só o trabalho assalariado se tornou mais fragmentado como a sua crescente precarização, fluidez e instabilidade lhe retiram significado enquanto estatuto ou condição de classe. Para além disso, a massa dos desempregados atinge hoje muitos milhões, desde os não-qualificados aos qualificados, dos jovens aos adultos, dos que se encontram a meio ou no final da "carreira profissional" aos que lutam sem êxito até à idade adulta por um trabalho precário (esquecida que está a noção de "carreira profissional"). Deste modo, mais do que pensar nos impactos da renovação das profissões, da tecnologia ou do processo de massificação de credenciais académicas, importa pensar quais os recursos que devem ser considerados para identificar os distintos segmentos que compõem a classe média na atualidade (ou no futuro próximo). Um estudo recente de sociólogos ingleses (Devine, Savage e outros, A new model of social class) propõe uma nova tipologia de classes sociais (inspirada em P. Bourdieu e J. Goldthorpe) que inclui um leque de sete categorias: (1) elite - 6% da população do Reino Unido; (2) classe média estabelecida - 25%; (3) classe média técnica - 6%; (4) novos trabalhadores afluentes - 15%; (5) classe trabalhadora tradicional - 14%; (6) trabalhadores de serviços emergentes - 19%; e (7) o precariado - 15%. Em termos meramente quantitativos, pode dizer-se que a classe média inglesa possui um peso significativo (entre 45% a 55% da população, consoante os indicadores sejam usados num sentido mais apertado ou mais amplo), mas o que não se deve é tomar por igual o que é fortemente desigual ou por homogéneo o que é heterogéneo.
O posicionamento dos grupos sociais no espaço - social ou territorial - processa-se segundo lógicas de aproximação e afastamento, de identificação e demarcação e, assim, os diferentes segmentos, as suas práticas e subjetividades, orientam-se segundo critérios que dependem não só do volume de recursos que controlam mas do tipo de recursos e do modo como eles se conjugam. Exemplo: elevado capital educacional e cultural conjugado com escasso capital económico tende a proporcionar atitudes e comportamentos contrários à situação inversa, isto é, quando a riqueza e o dinheiro abundam em setores com fracos recursos culturais: uma família de "classe média estabelecida" (por exemplo, negociantes recém-enriquecidos) demarca-se no seu modo de vida de uma outra que perdeu o emprego (por exemplo, professores à beira do empobrecimento) e que, com toda a probabilidade, tende a revoltar-se contra a sociedade, o mercado e o poder político.
Ao contrário da retórica dominante, as estruturas do capitalismo e as dinâmicas concorrenciais do mercado desenrolam-se sob o signo do poder e dos jogos de soma nula (os ganhos de uns são as perdas de outros) e não tanto na base de uma partilha ética de valores meritocráticos. Quer isto dizer que a distribuição desigual do poder (económico, social, político, simbólico, etc.) é um fator que não apenas define os antagonismos entre pobres e ricos ou entre capital e trabalho, mas também entre camadas sociais que, sem se posicionarem nos extremos, disputam entre si um lugar na estrutura da sociedade, seja no quadro da ordem vigente (é o caso dos segmentos "instalados") seja na sequência de uma nova ordem que possa emergir após um sobressalto cívico, uma rutura estrutural ou uma revolução, em que esses mesmos setores sejam protagonistas.