O embaratecimento do trabalho e o esvaziamento da democracia serão as marcas que a História registará, com a sua leitura impiedosa permitida pela distância do tempo, dos anos que estamos a viver. Pouco mais ficará para memória futura. Uma historiografia crítica não deixará, todavia, de assinalar que o caminho de cada um daqueles dois traços de regime foi suportado por um mesmo dispositivo ideológico: o discurso do estado de exceção. É da força desse discurso que se faz a força deste regime, é ele que legitima e ganha suporte social para cada uma das medidas que embaratecem o trabalho e esvaziam a democracia.
Estado de exceção económico e social, em primeiro lugar. O discurso legitimador do embaratecimento do trabalho – da perda de salário, dos cortes nas pensões, do encurtamento das políticas sociais ou da desqualificação e privatização de serviços públicos – toma como axioma que aquilo a que chama crise económica legitima a derrogação de direitos básicos e a substituição da legalidade mínima própria de um Estado de Direito (por exemplo o princípio da proibição de cortes retroativos de salários e pensões) por regras casuísticas. Esse discurso tem duas armadilhas. Primeira, diz que há uma crise grave mas a sua única preocupação é atirar a responsabilidade por ela para cima de quem trabalha ou trabalhou, apagando o rasto das origens da crise no sistema financeiro. Segunda, anuncia a privação de bens e direitos como caminho de fortalecimento social e insinua que a legalidade que os consagra é parte da crise. Por trás do nevoeiro destas armadilhas revela-se o verdadeiro desígnio deste discurso: a crise serve para embaratecer o trabalho, sob todas as formas referidas, e transferir essa diferença de rendimento para quem sempre beneficiou do capitalismo rentista em Portugal.
Estado de exceção política e institucional, em segundo lugar. O discurso legitimador do esvaziamento da democracia sugere que a divergência e a disputa política são um luxo a que não se pode dar um país confrontado com uma crise económica grave. Esta tese da democracia como um luxo tem na retórica da salvação/união nacional a sua expressão mais clara. Ela sustenta que, lá no fundo, a democracia é um jogo para ser jogado só quando não há coisas mais importantes para fazer e que os verdadeiros patriotas são os que aceitam que esse jogo deve ser suspenso para que aquilo que eles acham que é a sobrevivência da nação possa prevalecer. Este discurso tem duas armadilhas. Primeira, sustenta que a democracia é uma atividade de recreio ou um cerimonial de conveniência mesquinha pessoal ou de grupo, diminuindo-a na sua capacidade de ser modo de organização de todas as relações sociais. Segunda, a sobrevivência da nação que ele veicula é aquilo que alguns acham que deve ser a nação, mas só alguns, os que invariavelmente determinam para onde deve ir a nação. Por trás do nevoeiro destas armadilhas revela-se o verdadeiro desígnio deste discurso: a crise serve para esvaziar a democracia e desqualificar as alternativas quer à austeridade quer à promiscuidade entre Estado e negócios de que se fez a elite empresarial portuguesa.
O discurso do estado de exceção, filho do casamento entre a febre da salvação/união nacional com o falso moralismo do pagamento integral da dívida é o mais perigoso inimigo da democracia no nosso tempo em Portugal. É por isso que a defesa da renegociação da dívida e a defesa das alternativas políticas e económicas são o núcleo duro da defesa da democracia no nosso tempo em Portugal.