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24-07-2013        Público

Talvez a mais célebre fórmula política de Sá Carneiro seja "uma maioria, um governo, um presidente". No contexto da Constituição de 1976 que previa a dupla responsabilidade política do governo perante o Parlamento e o Presidente (cláusula alterada em 1982), e na vigência de um compromisso tácito para que a presidência fosse ocupada por um militar a quem se devia confiar não uma missão de liderança mas de arbitragem, Sá Carneiro procurava dar consistência a um projecto político na contagem decrescente para as eleições presidenciais de 1980. Certamente em virtude da sua trágica morte, essa fórmula, inspirada no modelo francês, não chegou a ser completamente explicitada, mas permaneceu no imaginário nacional como um sonho adiado, carregado das virtudes de soluções virgens.

Sobretudo desde que a presidência regressou às mãos de civis, o modelo dominante consiste na separação da legitimidade presidencial daquela que sustenta o governo por forma a definir o magistério do Presidente acima da luta partidária no Parlamento. A declaração de Mário Soares na noite da sua primeira eleição que extinguia a "maioria presidencial" para emergir como "presidente de todos os portugueses" constitui a matriz que sucessivas eleições têm confirmado. Nenhum dos principais candidatos ao cargo deixou de combater qualquer suspeição de que no exercício do cargo iria favorecer a família política de que era oriundo, como a fórmula de Sá Carneiro postulava. Os exemplos de Mário Soares, ao dissolver o Parlamento em 1987 contra a posição do PS, e de Jorge Sampaio, ao decidir empossar Santana Lopes contrariando a vontade do partido em que permanecia filiado, ilustram bem a independência presidencial.

Apesar disso, Portugal assistiu já a dois episódios que se relacionam com o sonho de Sá Carneiro. Entre as eleições de Março de 2005 que confiaram ao PS uma maioria absoluta e Março de 2006, houve uma sintonia à esquerda entre maioria parlamentar e Presidente. O padrão de comportamento do Presidente, porém, não se alterou. Exemplo disso foi a recusa de Sampaio em convocar novo referendo sobre o aborto que lhe foi proposto por Sócrates. O segundo episódio é o que vivemos depois das eleições de Junho de 2011, em que a direita controla em simultâneo o Parlamento e a presidência. O segundo mandato de Cavaco Silva iniciou-se, de forma inédita, com a sua participação activa no derrube do Governo em funções e a convocação de eleições antecipadas- muito ao estilo do que se passa em França - das quais resultou uma maioria PSD-CDS. Estava conseguida à direita a junção de maioria, Governo e Presidente, por abdicação de Cavaco Silva da representação isenta de "todos os portugueses" em benefício do seu eleitorado. É com este pano de fundo que se desenrola a actual crise política.

Os acontecimentos das últimas semanas vieram expor que a fórmula de Sá Carneiro, finalmente experimentada, não tem poderes mágicos, pelo que se torna importante compreender o que falhou no modelo ensaiado.

Cavaco Silva desde cedo se mostrou partidário de uma fórmula que coloca a tónica nos poderes do primeiro-ministro e limita o campo de acção do Presidente. Tal atitude evidenciou-se quando ele próprio era primeiro-ministro e exprimiu-se na famosa frase: "Deixem-nos trabalhar!" Já este ano, esse entendimento veio a ser reafirmado no discurso do 25 de Abril, e nas declarações da passada semana de que apenas o Parlamento poderia derrubar o Governo. Cavaco Silva tem teorizado um papel minimalista para o Presidente, por forma a que se possa exprimir plenamente a componente parlamentar do regime. Esta tónica no chefe do executivo é o que mais o aproxima da fórmula não explícita de Sá Carneiro. Só que a realidade política tende a ser mais complexa, sobretudo quando está em jogo o prestígio e a capacidade de intervenção do próprio Presidente.

O seu discurso de tomada de posse foi mais longe na crítica e na retirada de confiança a um governo do que algum presidente alguma vez fora (desdizendo na prática o que agora proclama como princípio...). Mas Cavaco Silva acaba de descobrir que, sem uma articulação próxima entre si e um grande partido de suporte à sua acção, o papel do Presidente que se queira assumir como herdeiro da fórmula de Sá Carneiro é de facto limitado. O "respeito" de que se julga merecedor - ou seja: a capacidade de intervir no desenho estratégico da política nacional - esbarra em lideranças partidárias que fogem ao seu controlo e que não desejam submeter as suas estratégias à do Presidente. Durante meses a fio Cavaco Silva foi dando uma no cravo - apoiando politicamente o Governo para além dos limites a que outros presidentes nos habituaram e teorizando a sua visão sobre os limites dos poderes presidenciais -, outra na ferradura - ora fazendo discursos no estrangeiro em tom distinto daqueles que proferia internamente, sugerindo que tinha ideias distintas das do Governo, ora advogando retoricamente uma abordagem que incluísse o PS à qual Passos Coelho contrapunha a sua obstinação isolacionista sustentada na suficiência de uma maioria parlamentar. Sem nunca abdicar de um posicionamento inequivocamente comprometido à direita. Só que os partidos da direita evidenciaram uma incompetência governativa sem paralelo, que impede o Presidente de se manter fiel à matriz minimalista que desejava, e não lhe proporcionam meios efectivos de intervenção.

O Presidente da República luta por reafirmar uma posição de autoridade de que foi abdicando em favor de um governo que lhe fez o favor de se esfrangalhar na praça pública. Procura descolar da imagem de um presidente comprometido com um sector específico da sociedade e reassumir o legado dos seus antecessores (e mesmo assim de forma imperfeita, com inéditas cláusulas de exclusão de parte da esquerda parlamentar!) de que se tinha afastado, quando a maioria parlamentar não desarma de uma política cujo falhanço foi evidenciado por ocasião da demissão do ministro das Finanças. Mesmo que a ideia-base que avançou - a de comprometer o PS com a política de direita - seja compatível com uma formulação genérica da ideia de Sá Carneiro, Cavaco teve de rever profundamente o seu posicionamento de acomodação ao statu quo. Instalou-se assim uma querela pública entre os dois principais protagonistas institucionais da direita. Se ao menos o Presidente compreendesse que a condição para um entendimento alargado consiste em colocar em cima da mesa a renegociação do memorando de entendimento e tudo o que dele deriva, como sugere a carta de demissão de Vítor Gaspar - afinal, o efectivo elo de articulação e de garantia de confiança entre o Presidente e o Governo, bem à margem dos formalismos que mantêm Passos Coelho como primeiro-ministro -, poderíamos vislumbrar uma razão de fundo para tal evolução. Insistir em cumpri-lo sem qualquer consideração pelos efeitos devastadores que as medidas ensaiadas tiveram não terá certamente condições para reverter os efeitos negativos que estão na base da desagregação do Governo. Entre manter em funções um governo que já não corresponde aos anseios dos partidos que o integram, minado na confiança de que carece, aceitar a remodelação proposta, recuando na sua ostensiva rejeição na passada semana, ou avançar para um governo de iniciativa presidencial inédito desde a revisão constitucional de 1982, e que pressupõe uma derrota das lideranças dos partidos da direita que se veriam arredadas do poder, os caminhos do Presidente são estreitos. Nenhum parece ter menos inconvenientes que as "inconvenientes eleições" - a válvula de escape de qualquer democracia que se preze. A escolha final resultou na assunção de que a via por si proposta fracassou (o que é inédito num Presidente da República!) e que, tirando uns votos piedosos, nada de substancial diferencia a solução escolhida da que podia ter sido tomada duas semanas antes.

O que este episódio revela é que a fórmula de Sá Carneiro não tinha sido testada e por isso pôde manter crédito junto da opinião pública. Quando foi aplicada, conduziu a um descrédito das instituições como nunca se vira na história democrática portuguesa, com o Presidente a navegar em níveis de popularidade negativos. Na verdade, o drama de Cavaco Silva é que o que ele deseja fazer agora requer uma articulação partidária forte. Quando a teve, isso barrou-lhe as portas da presidência em 1996, e só quando dela se desfez conseguiu aceder a esse posto. A fórmula de Sá Carneiro, agora posta à prova através de uma pirueta do Presidente que se afastou da sua plataforma eleitoral para a vir abraçar, nada de positivo trouxe por contraponto ao modelo que Soares e Sampaio definiram para o comportamento de um Presidente da República no quadro da nossa Constituição. O sonho de Sá Carneiro é hoje o pesadelo de Cavaco Silva. Infelizmente é também o pesadelo de grande parte dos portugueses.


 
 
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Rui Feijó



 
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