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30-06-2013        Público

O reconhecimento de uma variedade de orientações sexuais e relacionais, com identidades de género diversas, é o caminho para uma sociedade mais justa, porque inclusiva. Esse é o trilho jurídico que Portugal tem seguido. Mas a transformação cultural - a igualdade de facto - é um processo lento e porventura escorregadio. A coexistência de leis justas e atitudes discriminatórias sucede porque o preconceito se reproduz, tentacular e resiliente, a partir de muitos lugares quotidianos. Acontecimentos recentes ilustram este argumento.

No programa Prós e Contras sobre coadoção em casais do mesmo sexo (27 maio), António Marinho e Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados, repetiu, veemente: os afetos têm género. Procurava-se assim justificar a necessidade de proteger "a criança", essa categoria utilizada de forma difusa e artificialmente homogénea em nome de um bem supremo que não carece de protocolo ou validação posterior (nem anterior).

Quando se fala em homoparentalidade - o exercício das responsabilidades e direitos parentais por parte de pessoas ou casais não heterossexuais - "proteger a criança" parece reportar-se a uma urgência em precaver famílias diversas (como já o são, de resto, muitas das famílias em que sempre cresceram crianças). Este raciocínio não é recente (recordemos debates sobre a lei da adoção em 2003), nem informado, apoiando-se em mitos demagógicos que invocam 1) a ausência de modelos masculinos e femininos - sem que se esclareça o que se entende por cada um deles -, 2) a orientação sexual por legado hereditário e 3) o estigma irreversível. Sobre estes fantasmas já a Organização Mundial de Saúde e a Associação Americana de Pediatria, entre outras instituições, emitiram pareceres com sustentação empírica que apaziguariam os espíritos mais inquietos. Em suma, a comunidade científica reconhece que as crianças absorvem modelos de género entre pares e a partir das pessoas adultas significativas; que a heterossexualidade não é genética (nem a homossexualidade, já agora); e que as crianças integram bem a diversidade. Por exemplo, o Australian Study of Child Health in Same-Sex Families, realizado na Universidade de Melbourne e divulgado este mês, demonstra que crianças criadas em famílias não heterossexuais revelam melhores indicadores de bem-estar e coesão familiar quando comparadas com as restantes.

No caso da coadoção, o argumento contra a alteração jurídica é particularmente insustentável, ao recusar que o Estado alargue as responsabilidades parentais à mãe ou pai não biológicos com quem a criança já vive - sempre viveu - em família. Tal perspetiva veicula um preconceito histórico arreigado, cujas molduras estão amplamente estudadas.

Na resposta, quem defende o direito à parentalidade procura apaziguar o mito de que, num contexto homoparental, "a criança" carecerá de referências masculinas ou femininas. Nessa justa tentativa, Mário Cordeiro, pediatra, num vídeo que circula nas redes sociais, afirma que quando um pai embala está a ser (simbolicamente) mãe, e que quando uma mãe leva a criança ao parque infantil está a ser (simbolicamente) pai. A emenda padece de um mal semelhante ao do soneto pouco sofisticado: tendo por protagonista a mãe ou o pai, a metáfora alicerça-se em dois géneros, dois necessariamente, dois apenas, e quem dita as diretrizes sobre cada um deles é a natureza - a ordem natural das coisas, na mundivisão de Marinho e Pinto -, ou a cultura.

Entretanto, o regime de género permanece incontestável. Como se fosse uma insensatez perigosa questioná-lo, sobretudo quando se invoca o superior interesse de uma criança abstrata, destinada a ser esculpida menino ou menina, consoante a genitália e, logo depois (por vezes antes ainda), nos padrões das cortinas do quarto primeiro, nos brinquedos, nas roupas, nos acessórios (ou ausência destes).

O regime de género, com variações geográficas de acordo com o legado histórico de cada país, consiste no acordo jurídico, cultural e político que estabiliza as categorias de género, fazendo-lhe corresponder papéis, responsabilidades e expectativas sociais dependentes de uma classificação que nos é, em rigor, alheia. Ninguém participa no processo métrico que determina o género que lhe é atribuído à nascença. Pelo contrário, por via burocrática o género cola-se-nos ao corpo como um rótulo, um carimbo atribuído por outrem, um dado anterior ao contacto visual entre mãe biológica e criança. Constituindo o lado B da biopolítica, o regime de género é o que lhe confere legitimidade quotidiana, uma aura de necessidade prudente, de que tem que ser assim porque sempre foi assim (mesmo quando nunca foi assim). Mas o regime de género depende também da sua repetição, precisa de cúmplices, agentes de implementação e vigilância que lhe conferem autoridade e se exprimem em contextos múltiplos - a consulta pré-natal, a sala de partos, o berçário, a escola, o centro de ATL, o desporto ao fim de semana, a cabeleireira do bairro, o WC do restaurante, a divisão sexual do trabalho religioso, o registo civil.

Regresso ao ponto de onde parti. Defender o regime vigente de género para proteger "a criança" é incorrer numa violação dos direitos de todas as crianças. Desproteção é negar a todas as crianças o direito de ver garantido pelo Estado o reconhecimento de que a sua família de facto também é família de direito, de que não são crianças de segunda, de que os seus pais ou as suas mães são justamente isso, família. Acresce que o modelo estreito de família nuclear - mãe e pai casados e reprodutivos - não corresponde sequer ao amplo cenário das famílias nas sociedades contemporâneas. Já em 2001, esse modelo equivalia a apenas 22% das unidades familiares no Reino Unido. Os resultados definitivos dos Censos 2011 para Portugal apontam no mesmo sentido. A fantasia heteronormativa resvala perante a realidade.

Em 2013, enfim, a sociedade portuguesa não se revê na Lição de Salazar, publicada no Manual de Educação em 1938, e que projetava uma visão binária da realidade familiar, em que os papéis sociais estavam colados ao corpo domesticado que os desempenhava, obediente. Hoje sabemos que, tal como a criança é heterogénea, também os géneros são muitos e as famílias diversas. Sempre foram. A diferença é que agora essa multiplicidade de género, sexual e relacional transbordou, denunciou o estigma, perdeu o medo, adquiriu um lugar próprio no Princípio da Igualdade da Constituição da República Portuguesa. E a dignidade humana não é negociável.


 
 
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Ana Cristina Santos



 
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