“Aqui estou, não como um profeta mas como um servo do povo.” Proferida na tomada de posse como Chefe de Estado, a frase é um invulgar exemplo da enorme grandeza da simplicidade. Sucede que, no caso de Nelson Mandela – foi dele a frase quando tomou posse como Presidente da República da África do Sul – a simplicidade não foi charme retórico. E isso fez da sua grandeza algo infinitamente maior que o brilho episódico e frágil dos pequenos heróis mediáticos de circunstância.
Mandela não se absteve diante do esmagamento da História. Não foi neutro, não foi equidistante, não foi distante. Implicou-se, tomou partido, escolheu. Sabendo sempre que pagaria o mais alto dos preços por isso. Podia ter sido um advogado tranquilo, com uma família tranquila, com hábitos tranquilos e com um horizonte tranquilo. Preferiu não ser. Preferiu a coluna vertebral das convicções ao descanso morno. Preferiu a luta ao prestígio social. Soube ser intransigente e ao mesmo tempo suscitar apoio largo. Na rua e na prisão foi o primeiro lutador pela regra de ouro da Freedom Charter adotada pelo ANC em 1955: “Que o povo governe”. O seu testemunho de firmeza valeu-lhe a condenação a prisão perpétua em 1964 e o estigma de “perigoso terrorista internacional” afivelado por muitos dos poderes que hoje lhe tecem hinos. Viveu com essa condenação e com esse estigma durante um quarto de século. E soube vencê-los pela resistência serena e firme. Mandela sintetizou na valentia da sua rutura com o racismo institucionalizado e na firmeza da sua resistência o melhor de que a humanidade é capaz. Devemos-lhe isso.
Bastaram dois dias após a libertação de Robben Island para que a bolsa caísse a pique, para que o rand desvalorizasse em 10% e para que a De Beers transferisse a sua sede para a Suíça. Os donos do poder económico perceberam que o fim do apartheid político poderia ser apenas o começo do fim do apartheid económico. E a verdade é que a resposta do novo poder sul-africano, feita de compromissos com as elites internas e com a nebulosa da governação global, se encarregou de tirar força à crença, longamente maturada por Mandela, de que sem redistribuição não haveria verdadeira liberdade e à sua consequente promessa, escrita 15 dias antes da libertação do cárcere, de reconfiguração profunda da ordem económica sul-africana como garantia do bem estar do povo. A causa de uma vida – o fim do apartheid – ficou limitada ao político e esqueceu taticamente o económico. A desigualdade e a discriminação continuaram matriciais na sociedade sul-africana. Tivesse esse outro combate sido completado e certamente muitos dos que hoje incensam o Mandela reconciliador o crucificassem politicamente como quiseram fazer nos anos de chumbo da prisão.
Sem Nelson Mandela ficamos não sem um santo mas sem um dos melhores humanos. Precisamos de gente assim, que combata sem ser por honrarias e que se mude a si mesmo antes de convocar os outros à mudança. E precisamos de levar até ao fim – na África do Sul como na Europa e em Portugal – o combate a todos os apartheids. Não só os da raça mas todos os que impedem as pessoas de realizarem plenamente as suas capacidades.
O longo caminho para a liberdade não acabou.