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21-06-2013        Público

O país e a classe dirigente brasileira foram surpreendidos com a amplitude dos protestos dos últimos dias (17-18 de junho). Quando, cerca de uma semana antes (11 de junho), em São Paulo, umas centenas de jovens marcharam do centro da cidade para a Av. Paulista empunhando cartazes e gritando slogans contra o aumento dos bilhetes do transporte público - de R$ 3,00 para R$ 3,20, nos autocarros, metro e comboios -, barrando o trânsito de uma das principais artérias da capital e suscitando cargas de grande violência pela Polícia Militar (apesar de os manifestantes terem oferecido flores e abraços aos polícias), ninguém esperava que a revolta assumisse tais proporções. Vários jornalistas foram, então, feridos com agressões e balas de borracha disparadas pela PM, o que certamente não será alheio às manchetes que o assunto mereceu na generalidade dos jornais nacionais e locais nos dias subsequentes.

As justificações incoerentes ou autoritárias da dupla Haddad (perfeito)/Alckmin (governador) - numa sintonia contranatura entre partidos rivais (PT e PSDB) - incendiaram a faúlha que se espalhou pelo país uma semana depois. De um movimento que começou por ser uma ação local contra o aumento do custo do transporte (o Movimento Passe Livre, em São Paulo) passou-se à contestação dos apoios públicos ao Mundial de Futebol e à luta por melhor educação e serviços públicos. A noite do passado dia 17 foi o ponto culminante: no Rio de Janeiro irromperam nas ruas cerca de 100 mil pessoas, que chegaram a intimidar a segurança policial no Palácio Tiradentes (sede da Assembleia Legislativa); em Brasília, perto de 10 mil entraram pelos acessos do edifício e ocuparam a cúpula do Congresso Nacional; em São Paulo, cerca de 65 mil manifestantes assentaram junto aos portões do Palácio do Planalto e mais tarde, durante a noite, voltaram a lançar o caos na Av. Paulista. Segundo cálculos da imprensa, à volta de 250 mil pessoas, no total, integraram os protestos em 12 cidades, a maioria delas capitais estaduais (para além das concentrações de solidariedade na Europa e EUA), num clima que pôs a nu a inconsistência e a confusão da classe dirigente e do Governo brasileiro. O comportamento da polícia, por exemplo, passou da habitual arrogância a uma atitude defensiva, de hesitação e de recuo (terá sido avisada de que a repressão é o melhor combustível destes movimentos?), o que, no entanto não evitou situações de violência, com feridos e dezenas de prisões (sobretudo no dia 18, na cidade de São Paulo), onde os grupos mais radicais tentaram invadir a sede da prefeitura. Enquanto uma maioria de manifestantes pacíficos tenta pressionar o poder e negociar, minorias extremistas optam por ações violentas contra a polícia e os edifícios, com isso revelando as diferenças e a instabilidade do movimento.

Há poucas semanas, várias manifestações de comunidades indígenas que resistiam à devolução de terras já haviam suscitado violência policial em Brasília e no Mato Grosso do Sul; e há dias, as vaias a Dilma Rousseff e Josef Platter na abertura da Taça das Confederações deixaram sinais de alerta; mas a atitude autocentrada da elite dirigente, a sua displicência e submissão aos grandes interesses económicos parecem impedi-la de perceber as razões do descontentamento dos grupos subalternos e de dar combate ao caos urbano e à degradação das condições de vida nas grandes cidades.

Um outro aspeto a considerar, a propósito do Brasil, é que quando o povo alcança os primeiros direitos, regra geral, pretende ir mais além. Apesar dos impressionantes índices de popularidade do ex-Presidente Lula da Silva ou mesmo da atual Presidente (que, aliás, vem decaindo nas sondagens), a imagem dos partidos e dos detentores de cargos políticos, do mais pequeno município ao Governo central, coloca-os sob permanente suspeição. A recente evolução positiva da economia e das políticas sociais em geral, a melhoria salarial e o acesso à educação por parte dos segmentos mais carenciados contribuíram não apenas para animar o consumo e o crescimento económico, mas também para despertar as consciências e tornar mais exigentes as reivindicações e as lutas sociais dos sectores mais precários, bem como da juventude escolarizada. Se, com os govermos petistas, o campo sindical e o MST perderam vitalidade contestatária em favor de novos setores acomodados, os novos segmentos do precariado e o ativismo estudantil, à semelhança de outros países, dão continuidade à luta por direitos e tornam-se os potenciais protagonistas da mudança progressista na sociedade brasileira.

Apesar das particularidades, são visíveis as similitudes entre estes protestos e as recentes manifestações na Europa, nos EUA ou mesmo as da Primavera Árabe. O caráter fluido, a rejeição da política convencional, o recurso às redes sociais do ciberespaço e a dinâmica de juventude que anima estes grupos são algumas das suas características comuns. Como é habitual, a gota de água que espoletou a contestação (neste caso, o aumento dos preços do transporte público) teria de ser bem visível e facilmente percebida por segmentos sociais mais amplos e heterogéneos. Hoje, como há décadas, os movimentos sociais exprimem não só a frustração e o descontenamento da sociedade civil, mas também os limites e bloqueios da democracia. Mais de 40 anos após o maio de 68 e 30 depois das grandes lutas sindicais em São Paulo, sucessivas gerações de jovens, depois de tantas cargas policiais, pedradas, vidros partidos e gás lacrimogéneo acumulados, as democracias representativas já têm mais que tempo para incorporar a crítica e revertê-la no tónico necessário ao seu contínuo aperfeiçoamento. Porém, os antigos ativistas da CUT e do PT, hoje no Governo, parecem ter esquecido o poder dos movimentos sociais e que, apesar das contradições internas, eles se reinventam e mobilizam sempre que os atores institucionais se revelam incapazes de promover a mudança e consolidar a justiça social.


 
 
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Elísio Estanque



 
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