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10-06-2013        Público

O debate em torno das empregadas domésticas esteve nos últimos tempos na ordem do dia no Brasil, devido à recente emenda constitucional que lhes reconhece alguns direitos. Ao longo de vários anos que visito o país com alguma regularidade, sempre me chamou a atenção a presença das célebres "babás" nas casas das famílias da classe média educada (sobretudo académica) por onde tenho circulado. Nas situações que pude observar, as empregadas sempre eram mulheres, de pele escura (pardas ou negras), surgindo em silêncio na preparação do café da manhã ou na devolução da roupa lavada, sempre discretas, cabisbaixas e em geral embaraçadas quando a visita da casa lhes dirige a palavra para lá dos bons dias. Como dizia o autor do documentário Doméstica, importa atentar no "silêncio da doméstica quando lhe perguntam se ela é livre; ou na tentativa do patrão em mostrar cordialidade". De facto, quer o esforço para mostrar consideração para com a empregada, quer a atitude que a ignora e a torna "invisível" perante os demais são elementos de uma barreira de classes intransponível.

De resto, este tema é particularmente revelador não apenas das divisões classistas no Brasil, mas também de alguns hábitos incrustados em certas franjas das classes médias/superiores que reproduzem as práticas de patronagem e naturalização da servidão. Porém, a relação entre domésticas e seus empregadores é extremamente variada (há até empregadas domésticas que têm as suas próprias "babás"): desde casos em que os filhos dos empregadores foram criados pela "ama" e mantêm com ela uma relação maternal; situações em que as crianças da empregada vivem na própria casa dos patrões; domésticas que dormem na casa, outras que cumprem um horário específico, de "mensalistas" ou "horistas" (as chamadas "faxineiras"), etc., etc.

Desde a era colonial até hoje, a submissão servil, por um lado, e o baixíssimo custo desta força de trabalho, por outro, alimentaram um cenário para muitos considerado inaceitável e anacrónico num país que se quer moderno, desenvolvido e democrático. Segundo a OIT, o Brasil detém o recorde mundial no que toca ao volume de empregadas domésticas, com cerca de 6,6 milhões de pessoas (seguido pela Indonésia, 1,8 milhões, México, 1,7, EUA e França, com 600 mil e 500 mil, respetivamente), 93% das quais são do sexo feminino, correspondendo a 17% do total do emprego de mulheres. Mas a última década tem revelado uma progressiva descida do peso estatístico desta categoria no total de ocupados (de 7,8%, em 2001, passou para 7,1%, em 2011), tal como acontece com o setor informal que, no entanto, permanece elevado, com cerca de 70% do total. A esmagadora maioria das domésticas (90%) recebe até 1,5 salários mínimos e o salário médio da categoria é muito baixo - R$489,00/ mês, em 2010 -, se bem que o nível salarial tenha aumentado em cerca de 47% desde 2000. Também os recursos educacionais deste segmento evoluíram significativamente: a percentagem da profissão com o mais baixo nível de instrução (até 4 anos) passou de 73% em 1989, para 42% em 2009, enquanto as que possuem 5 ou mais anos de escolaridade evoluíram no mesmo período de 27,2% para 57,5%.

O crescimento económico recente no Brasil foi acompanhado, desde os governos Lula, por uma evolução dos direitos do trabalho assalariado com a respetiva melhoria do poder de compra dos trabalhadores. Daí resultou uma profunda recomposição da base da pirâmide da estratificação, com efetivos progressos nos direitos laborais em geral e que agora se estendem ao setor das domésticas, com a recente aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que equipara esta categoria ao estatuto dos restantes assalariados. É, portanto, à luz deste clima positivo, com o rápido crescimento do consumo e a elevação dos padrões de vida dos setores mais pobres, que devemos olhar as consequências dessas medidas: novo salário mínimo, horário limitado a 44 horas semanais (8 horas por dia), direito a horas extra com aumentos de custo/hora, mais obrigações do empregador para com a segurança social, etc. Todavia, o efeito é perverso, porque com o aquecimento do mercado de trabalho e a expansão do sistema educativo, é muito provável que o fluxo de domésticas que já está em trânsito para o setor dos serviços aumente de intensidade nos próximos tempos. Até porque, mesmo ganhando um salário idêntico, ou até inferior, muitas preferem trabalhar noutro serviço ou instituição porque isso lhes dá outro status.

Assim, perante o crescente reconhecimento de direitos aos segmentos subalternos da classe trabalhadora brasileira e o expectável aumento da tomada de consciência cidadã por parte de categorias como as "babás" (com os seus horários, salários e dias de repouso regulamentados), está em curso um novo posicionamento das classes média-alta e alta na sociedade e na estrutura familiar. O que significa que, a prazo, mesmo as/os sras./os. deputadas/os, ministras/os, dirigentes empresariais e outras "tias" da elite brasileira terão talvez de aprender tarefas tão comezinhas como cozinhar ou passar a ferro, para acorrer a emergências fora do horário de alguma das suas "serviçais", o que não deixará de constituir uma experiência emancipatória para ambas as classes.

 


 
 
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Elísio Estanque



 
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