"Não fosse a Troika e não haveria dinheiro para pagar salários nem pensões", repetem até à exaustão os arautos da intervenção estrangeira em Portugal. E logo acrescentam que é assim porque fomos vivendo longamente acima das nossas possibilidades, esbanjando dinheiro a rodos em saúde, em políticas sociais, num funcionalismo inflacionado ou num sistema educativo agigantado.
O argumento seria de ter em conta se não fosse duplamente falso. É falso, em primeiro lugar, porque num país socialmente tão frágil a escolha de reforçar as seguranças e os direitos dos mais pobres não foi gordura mas músculo. Os serviços públicos universais, o salário mínimo, os apoios aos desempregados e aos pobres não são um luxo, são imperativos mínimos da democracia e da coesão social. E é falso, em segundo lugar, porque a intervenção da Troika não fez recuar aquela parte do país que sempre viveu acima das possibilidades da grande maioria, antes a anima. A austeridade imposta aos pobres e à classe média tem como contrapartida um país em quinto lugar na compra de automóveis de topo de gama, um país cujo Governo faz a apologia da colocação de capitais em praças fiscais que institucionalizam a fuga à tributação e um país em que bancos em risco de falência atribuem prémios milionários aos seus gestores.
A notícia destes dias é que em pleno apogeu de diminuições nos salários de um povo que passou a fazer do quotidiano um exercício de pilotagem sem horizontes, no preciso momento em que a Troika exige a Portugal que se concretize cada cêntimo dos cortes anunciados nas reformas, o BANIF decidiu pagar um prémio de gestão de 533,7 mil euros a uma sua ex-administradora no Brasil, a adicionar aos 448,6 mil euros de salário anual que lhe foram pagos.
Fôra o BANIF uma entidade privada como outra qualquer e comportasse-se em conformidade com tal estatuto e o chocante do episódio seria apesar de tudo confinado ao domínio do mau exemplo. Mas não é assim. É muito mais grave. O BANIF é um banco intervencionado pelo Estado, que nele injetou 1,1 mil milhões de euros, passando a deter desde então 99,2% do seu capital. Que a administração do BANIF não tenha tido uma palavra sequer de crítica por parte do acionista quase único é revelador do pensamento desse acionista quase único quando se trata de impor limites aos desmandos de quem sempre surfou a onda da crise. No prémio milionário da administradora do BANIF está portanto sintetizada a crise toda: salvação dos devedores privados pela geração de dívida pública, transferência do ónus dos acionistas para os contribuintes sem que aqueles percam um grama sequer da sua sobranceria e se privem de se atribuir a si mesmos um cortejo de regalias a suportar pelo erário público. E até mesmo simpatia e cumplicidade do Estado para com quem administra um offshore.
O caso do BANIF está longe de ser solto: os presidentes executivos das empresas cotadas no PSI-20 receberam em 2012 mais 6% do que haviam recebido no ano transato, num total de mais de 15 milhões de euros. Sabendo que em Portugal a média das remunerações de quem trabalha diminuiu cerca de 7,2% no mesmo período, a conclusão é simples: crise é o nome que damos à gigantesca transferência de rendimento de quem sempre viveu abaixo das suas capacidades para quem sempre viveu acima das nossas possibilidades.