Enquanto na Europa enfrentamos um acelerado processo de descredibilização da democracia, voltando a pairar no ar o espectro do fascismo, no Brasil a onda de religiões evangélicas e pentecostais começa a ganhar contornos verdadeiramente ameaçadores. Entre os anos 1970-2010 os católicos (ou declarados) desceram de 91,8% da população para 64,6%, enquanto os evangélicos subiram de 5,2% para 22,2% (dados IBGE). Uma reportagem recente na revista Carta Capital (17/04/2013), retratou a crescente promiscuidade entre essas igrejas e a política. Não só se multiplicou nos últimos anos o número de deputados e vereadores daí oriundos como se fortaleceu a articulação entre essas diferentes "seitas", cujo traço comum é usarem os nomes de Deus e de Cristo para ganharem poder e influência.
As frentes parlamentares evangélicas (FPE) já funcionam em 15 estados da federação brasileira, contando com mais de 100 deputados estaduais evangélicos e, segundo o presidente do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política, esperam em breve "passar os 10 mil vereadores evangélicos". No dia 12 de abril passado, a Primeira Igreja Batista de Campo Grande (Mato Grosso do Sul), foi pequena para acolher os cerca de 350 pastores, entre os quais se contavam 25 deputados parlamentares. Uma das anfitriãs, a vereadora de Campo Grande (professora Rose, do PSDB), fez aprovar na prefeitura da cidade uma lei que obriga o poder público a apoiar programas sociais dinamizados por evangélicos, entre as quais se destacam as "escolinhas", as "casas de passagem", os projetos Ceia, Jardins de Cristo etc., atividades que constituem os principais veículos de recrutamento doutrinário.
A estratégia de "verticalização" das referidas FPE congrega "representantes" de siglas partidárias tão diversas como PSDB, PDT, PT, PRB, PSB, PP, PSL, PMN, PSC (Partido Social Cristão, o único explicitamente evangélico). Ao mesmo tempo que se constata a amálgama de ideologias políticas no Brasil, este pluralismo de dogmas desdobra-se em alianças pragmáticas, propagando o seu moralismo de "bons costumes" e multiplicando o seu "rebanho" de fiéis, num seguidismo incondicional ao pastor/líder que transita com toda a facilidade da igreja para o voto, de um púlpito para outro, de um dogma para outro. Afinal é tudo uma questão de fé. As propostas apresentadas ao nível dos municípios são bem reveladoras: a atribuição de nomes bíblicos a praças e ruas, propostas de criação do Dia do Evangelho como feriado nacional, a organização de marchas, passeatas "Gospel", controle e ampliação de estações de rádio e TV, inclusive apropriação de partes de ruas (em Belo Horizonte); obrigar as noivas a casarem-se com roupa íntima de tamanhos e formas predefinidos (Vila Velha/ES); exigir a professores e alunos a oração do Pai-Nosso antes do início das aulas (Ilhéus/BA); criação de um WC para gays, lésbicas e transsexuais (São Paulo/SP); proibição de bares com venda de bebidas alcoólicas a menos de 300 metros da igreja (Sorocaba/SP); instituição do Dia do Orgulho Hetero no calendário (São Paulo/SP); obrigação de leitura de trechos da Bíblia antes das sessões no município (Passo Fundo/RS). Na periferia do Rio de Janeiro (São Gonçalo) a antiga Praça Chico Mendes (em memória do célebre ambientalista assassinado na Amazónia) mudou de nome para "Praça da Bíblia", decisão justificada pela ex-prefeita nos seguintes termos: "Antes essa praça era relacionada a crimes, hoje manifesta a palavra de Deus". Enfim, todos os meios servem para travar projetos de lei em defesa dos direitos das minorias raciais, dos movimentos gay e feministas, da legalização do aborto, do consumo de drogas leves, etc.
É neste quadro que decorre a recente agitação em torno do nome de Marco Feliciano, o novo presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) eleito pelo Congresso Nacional. Este pastor evangélico, figura a todos os títulos controversa, foi protagonista na sua própria igreja de cenas com simulacros de "exorcismo" e fez repetidas afirmações (documentadas em vídeo) de índole racista e homofóbico, como a de que os africanos transportam o estigma do demónio, ou que as balas que mataram John Lennon foram disparadas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, etc., etc., atitudes que têm sido lembradas pelas dezenas de milhares de manifestantes e ciberativistas, indignados com tudo isto mas que foram, até hoje, impotentes para remover tal personagem da referida comissão.
O discurso demagógico contra a violência, a droga e a perversão dos "valores morais" tem acolhimento sobretudo junto das camadas mais pobres, dos que se sentem excluídos e abandonados pelos políticos e surge como suporte comunitarista numa sociedade que alicia diariamente ao consumismo e à individualização, enquanto fragmenta a velha identidade comunitária. Por isso, a base social de apoio destes movimentos é reveladora: 64% ganham até um salário mínimo (260 euros); e 42% possuem um nível de instrução com ensino básico incompleto.
Em suma, se nas democracias amadurecidas da Europa a classe política é rejeitada em nome da incompetência e da falta de ética, no Brasil a descredibilização da Igreja Católica e a diluição de correntes progressistas como a Teologia da Libertação não são sinónimos de secularização da sociedade, mas de uma crescente "sacralização" do discurso populista na esfera pública. Num tempo de incertezas em que "o ovo da serpente" parece voltar a ensombrar a memória coletiva dos europeus, não deixa de ser inquietante e paradoxal observar o Brasil a tentar construir um Estado laico e ao mesmo tempo a deixar-se minar por estes novos pregadores do obscurantismo e da "caça às bruxas".