Diz a jornalista, com o ar mais natural deste mundo: "Fulano tem um discurso mais radicalizado, mais de esquerda." A coisa passa sem reparo e o ouvinte constrói uma imagem acabada de Fulano. Nessa imagem, radicalismo e esquerda são sinónimos e, implicitamente, direita e moderação também. Fulano diz que não podemos pagar uma dívida como a que nos é exigida e é por isso um radical; já Sicrano decide operar o maior corte de sempre na despesa social em Portugal porque acha que é assim que tem que ser e é um moderado.
Portugal vive um tempo dominado por estas estratégias de fabricação de um senso comum que misturam sabiamente simplismo indolente com moralismo mesquinho. O País vive amarrado a imagens e frases feitas, condenado a não as discutir. A força dessas estratégias é aliás essa mesmo: as supostas verdades por elas produzidas são tidas como absolutas e quem as questionar fica logo desqualificado como extremista. Da mão cheia de exemplos, escolho duas dessas sentenças definitivas sobre Portugal e a sua condição.
A primeira é a de que o problema do País é não sermos empreendedores. Ela parte de uma concordância indisfarçável com quem, lá fora, nos considera um povo de preguiçosos. Os defensores da tese acham que a grande maioria dos portugueses vive à sombra de direitos adquiridos, que isso é um convite à lassidão e que, por não nos querermos submeter aos riscos da iniciativa própria, constituímos um peso incomportável para as contas públicas. O empreendedorismo será a cura para este mal endémico dos portugueses: em vez de exigirem ao Estado que cumpra direitos que saem caro, montem um negócio, criem uma empresa, invistam na inovação e adquiram competências para pôr tudo a render. Esta apologia do "safem-se por vós próprios" tem, no entanto, um problema fundamental: quem vive encostado aos subsídios, às rendas e aos favores do Estado é, de há muito, a pequena elite que domina a economia portuguesa. É a essa casta e não aos milhões de portugueses pobres que se deve exigir que sejam efetivamente empreendedores e que adquiram competências para o ser.
A segunda verdade fabricada para o senso comum sobre Portugal é que se não pagarmos aos credores não teremos dinheiro para salários nem pensões. Sempre que a discussão sobre a austeridade e sobre a despesa pública aquece, os arautos da coisa fazem questão de a proferir como fecho de conversa. "Não há dinheiro, a não ser aquele que nos emprestam", sentenciam eles. Mentem sobre o passado: quando a troika interveio, as receitas do IVA eram superiores ao custo dos salários da função pública e as receitas da Segurança Social chegavam para pagar as pensões. Mentem sobre o futuro: obedecendo aos credores teremos um rácio da dívida no PIB superior e não inferior. Com uma agravante: a recessão e o empobrecimento tornam o respetivo pagamento cada vez mais impossível. Ou seja, quanto mais obedecermos aos ditames da troika credora, menos dinheiro teremos para pagar salários e pensões, não o contrário.
Mas a mais sórdida das retóricas de senso comum sobre Portugal é o célebre "que se lixem as eleições". Assim se insinua que em tempo de aflição financeira não há lugar para jogos florais políticos. A coisa passa sem reparo e o cidadão constrói uma imagem acabada da política. Nessa imagem, a democracia não é uma escolha mas sim um jogo. Mas o cidadão atento e crítico não deixará de registar que o mesmo Governo que deu esse recado moral simplório ao País escolheu o ano de eleições para abrandar a austeridade. E perceberá então que quem condena por palavras a política como jogo é quem quer fazer o jogo político na prática em benefício próprio. Percebendo-o, o cidadão escolherá. É isso que quem fabrica o senso comum mais teme.