A pretexto do lançamento em Portugal da obra do sociólogo brasileiro Ricardo Antunes com o título supramencionado (Os Sentidos do Trabalho: Ensaios sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. Coimbra: CES/Almedina, 2013) e num momento em que, na Europa e em Portugal, assistimos ao desmantelar dos direitos laborais, é imperioso repensar a categoria "trabalho", não só à luz da polissemia que lhe é intrínseca, mas também, tendo em vista a profunda metamorfose social que está em curso na Europa, interrogarmo-nos sobre qual será o significado futuro do trabalho e que formas virá ele a assumir num presumível cenário pós-crise.
Como se sabe, a crise global das últimas décadas é reflexo de uma aceleração dos mecanismos de mercado e dos fluxos financeiros, no seu papel multiplicador de acumulação de capital e de subalternização do trabalho produtivo. Dos tempos de Marx e das suas análises há, pelo menos, algumas ideias que voltaram a ganhar força na era do capitalismo neoliberal em que vivemos: a expansão das relações comerciais e do mercado fez com que o valor de troca suplantasse e dominasse o valor de uso das mercadorias; e a atividade económica no capitalismo, ao mercadorizar a própria força de trabalho, reverteu-se em força compulsória, exterior, metamorfoseando o trabalho numa forma alienada e de "estranhamento", ao qual o trabalhador foi sendo progressivamente submetido.
Neste contexto, o trabalho - designadamente o trabalho assalariado - manteve sempre um sentido ambivalente, sendo a um tempo factor contingente, de submissão e de resposta a necessidades imediatas, e a outro elemento potenciador de liberdade e de emancipação através da luta da classe trabalhadora. Mais do que julgar o pensamento de Marx como um todo, é preferível aprofundar a sua reflexão em torno do trabalho no capitalismo e, acima de tudo, prosseguir a crítica da sociedade capitalista através do trabalho e dos seus múltiplos contornos e significados. Enquanto atividade humana, o trabalho está no centro do processo de emergência das sociedades, mesmo nas suas formas mais primitivas. No entanto, a sua componente de realização e de criatividade foi progressivamente aviltada e revertida em exploração pelo sistema capitalista. Daí que a ideia de uma futura sociedade centrada no trabalho pressupõe resgatar o velho sentido libertador e emancipatório a ele associado.
É o trabalho que "possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser social. Ele está no centro do processo de humanização do homem." (Ricardo Antunes, Ibidem). Retomando a perspetiva ontológica de Georg Lukács (Ontologia do Ser Social), a noção de trabalho possui um sentido universal para além do capitalismo: (1) o trabalho distingue o agir humano dos outros animais; (2) define um modo particular de interação com a natureza e o ambiente; e (3) a própria dinâmica da sociedade está associada ao trabalho. Do ponto de vista da humanidade, o trabalho é uma atividade de que, no capitalismo, o trabalhador perdeu o controlo. A especificidade do capitalismo deriva da sua capacidade de reverter o trabalho num valor económico que escapa ao controlo dos seres humanos e de certo modo passa a dominar a sua existência social, ou seja, o resultado é que o fator "estranhamento" assume uma importância tão ou mais importante do que a "exploração" na obra de Marx.
É claro que, no contexto de crise e de escassez de emprego que se instalou entre nós, a imensa nuvem ideológica que (em períodos de estabilidade) conduz à alienação e ao fetichismo consumista, assume-se agora na ideia de que mesmo o trabalho mais degradante é preferível ao desemprego. Mas se aceitarmos que, apesar dos dramas atuais, nem isto é o fim nem o que se vai seguir é o nada, que a vida vai continuar para além desta crise (e se necessário para além do capitalismo realmente existente), importa no mínimo admitir duas coisas: primeiro, que o trabalho, mesmo subtraído de dignidade, irá continuar a constituir a base da riqueza e da coesão social; segundo, que as formas de trabalho assalariado terão de tornar-se mais polimórficas, flexíveis e desdobradas em temporalidades e dinâmicas onde as componentes opressiva e emancipatória ganharão um novo equilíbrio. Porém, até lá, será ainda a "classe que vive do trabalho" (onde se inclui o novo precariado e a classe média em declínio) que, com toda a probabilidade, irá induzir as ruturas sociais necessárias para abrir caminho. Do desfecho dessas lutas dependerá a possibilidade de - para além da produção - o trabalho se constituir em espaço de liberdade, de criação e de desenvolvimento cultural do trabalhador. Como nos lembra Ricardo Antunes, "se o trabalho se torna autodeterminado, autónomo e livre, e por isso dotado de sentido, será também (e decididamente) por meio da arte, da poesia, da pintura, da literatura, da música, do uso autónomo do tempo livre e da liberdade que o ser social poderá humanizar-se e emancipar-se no seu sentido mais profundo" (ibidem).