Fui até ao "fim do mundo" e posso dizer que gostei do que vi. Segui a retícula de Santa Fé até à praça principal, num domingo à tarde, com a cidade vazia. Um alinhamento contínuo de edifícios de dois ou três pisos, uma escala de província, onde irrompem estruturas monumentais como a desactivada e impressionante estação Belgrano ou o Palácio do Governo, reflexos de um imaginado progresso que foi interrompido. Fez-me lembrar um certo país.
Com 140 metros de largura, a Avenida 9 de Julho em Buenos Aires é uma praça gigantesca, um espaço público onde a cultura europeia e a escala americana se fundem, para usar o lugar-comum. No centro, o "Obelisco" homenageia Pedro de Mendonza e Juan de Garay, espanhóis fundadores da cidade. Não há nada como reconhecer e tratar bem o passado. A autoconfiança de Buenos Aires permite-lhe instilar uma elegância particular nos modelos europeus. A presença do livro parece estar relegada para o Novo Mundo, como se vê também no Brasil, um paradoxo que ganha uma emocionante dimensão na Livraria Ateneo instalada no Teatro "Grand Splendid".
Na urbanidade fulgurante de Buenos Aires, há excepções penosas: no bairro La Boca, à volta da "Bombonera", as famosas cores coloridas dos pobres edifícios surgem como maquilhagem para um turismo formatado e banal. Não muito distante daí, a renovação da área do porto conhecida como Puerto Madero é um exemplo típico deste tipo de intervenções na viragem do século: torres de alto sucesso, reabilitação de armazéns para fins gastronómicos, uma ponte de Santiago Calatrava, e os arquitectos do costume, Norman Foster, César Pelli.
É portanto tempo de fugir. Bem perto da Casa Rosada, onde Cristina Kirchner chega habitualmente de helicóptero, visito o extraordinário Banco de Londres (1960-66), de Clorindo Testa, arquitecto de origem italiana e um nome maior da arquitectura argentina. E fico muito impressionado com a Biblioteca Nacional, resultado de um concurso de 1961, só concluída em 1993, e um edifício que reúne as técnicas do brutalismo com o lirismo sci fi dos Archigram num efeito espantoso. Clorindo Testa é um nome brevemente citado nas historiografias escritas a norte e um desconhecido entre nós.
Recebi em frente à biblioteca a notícia da sua morte nesse dia. Sem saber, prestava-lhe homenagem visitando a sua obra nessa circunstância derradeira. Mal a conhecia; fiquei obrigado a conhecê-la muito melhor.
Com a Argentina, apesar da distância evocada na bem-humorada declaração papal, temos uma afinidade implícita e uma linguagem comum que tem no "portunhol" a sua medida infeliz mas prática... Catorze horas, partindo de Roma como o Papa, cruzando o Brasil, chega-se a Buenos Aires e não se quer regressar; afinal um certo fim do mundo parece estar do lado de cá.