Os arquitectos têm uma obrigação antiga de acompanhar os projectos com uma "memória descritiva". Não só memória mas também descritiva. Também se usa "justificativa" mas aqui estaremos já a recuar ao Estado Novo. Nos velhos tempos, invariavelmente, estas memórias começavam com um sintomático "serve a presente...", como quem diz, "já que somos obrigados a isto, como meros servidores...". Perante a abstracção dos desenhos, embora quase sempre a despachar, garantem um certo senso comum. Pessoalmente, nunca fui admirador da "arte de descrever". Prefiro, é claro, a ciência de concluir. Não há muito tempo, a crítica de cinema não descrevia o filme propriamente dito, como acontece na tradição anglo-saxónica: passava de imediato às conclusões.
Mas vejo-me obrigado a... concluir... que precisamos de mais e melhores descrições.
Ocorreu um desastre entre nós, isso é evidente. O fascínio da entrevista a José Sócrates foi ouvir a descrição de alguém que ia ao volante quando o carro se despistou. Todos nós temos boas teorias; mas a voz de quem guiava, ouvida depois de dois anos de coma filosófico, é puro suspense. Como em qualquer acidente, o condutor tem a certeza de que a sua versão é a correcta e que a dos outros é uma "narrativa". Como é natural, Sócrates não fez a desejada "memória descritiva", mas teoria de arquitectura. O actual surto de comentadores reflecte o voyeurismo usual em face do sinistro; e a polícia - a troika - nunca perceberá as dinâmicas da ocorrência, por mais que lhe tire as medidas.
A descrição obriga a uma devoção ao objecto, mesmo que este seja abjecto, precisa de tempo e de paciência e é, no limite, indiferente à conclusão moral. As estatísticas são um sucesso porque permitem passar do tema à sua conclusão sem o tempo perdido da descrição. Tal como esta epidemia, as meditações habituais sobre Portugal e os portugueses deviam ser postas em quarentena: os nossos defeitos-qualidades; as nossas insuficiências-valentias; no mundo-e-arredores. Tudo o que há a dizer sobre esta matéria já foi dito por Eduardo Lourenço e Miguel Esteves Cardoso, há muito tempo.
Também os arquitectos deviam descrever o que lhes aconteceu. O consenso a partir dos anos 1990 foi que não faziam programas; eram meros executantes. A famosa "crítica ao programa" foi posta na gaveta. Perante muita encomenda, depois de anos de escassez e de marginalidade, os arquitectos participaram vorazmente na festa.
No ano passado, Paolo Portoghesi, comissário da mítica Bienal de Veneza de 1980, mostrava-nos as suas últimas obras e fazia um mea culpa. Agora vive no campo e dedica-se a um tema que publicou em livro: Geoarchitettura. Esta "memória descritiva" também chegará aos arquitectos portugueses ou viajavam apenas no lugar do morto?