Portugal não tem quaisquer condições de pagar 125 mil milhões de euros (75 mil milhões dos quais a credores privados) nos próximos oito anos. Não há reengenharia financeira – incluindo extensões de maturidades dos empréstimos – nem malabarismo político que permita infirmar esta verdade. Sem anulação de montantes, Portugal sucumbirá a um insuportável peso relativo da dívida no PIB nacional. Para pagar este primeiro resgate terá que contrair um segundo, para pagar este um terceiro e assim sucessivamente. Essa é verdadeiramente a única inevitabilidade efetiva da nossa vida coletiva. Ela traz consigo uma escolha decisiva que o país tem que fazer: renegociar a dívida ou naufragar nela. Só por cegueira ideológica se pode teimar em negá-lo.
O Governo sabe-o melhor que ninguém. E já escolheu, sem hesitar, o seu lado: o do segundo resgate. A encenação catastrofista da última semana não foi outra coisa senão a criação de um clima antecipador do segundo resgate. O Governo está tão empenhado na concretização dessa escolha que foi ele próprio, quando do debate da moção de censura apresentada pelo Partido Socialista, que entendeu por bem trazer para o debate público o tema do segundo resgate.
A explicação é simples: escolher o segundo resgate em detrimento de uma renegociação da dívida que inclua os seus montantes não é algo que o Governo faça porque tem que fazer. Não, o Governo vê no segundo resgate a oportunidade de levar por diante um programa, que sempre foi o seu, de destroçar por inteiro o Estado Social em Portugal. Que Passos Coelho e Vítor Gaspar atribuam ao Tribunal Constitucional a responsabilidade dessa destruição dos serviços públicos é uma expressão de cinismo puro. Eles querem, nunca o esconderam, essa destruição. Esse é o seu programa para o país. Que não tenham a coragem de o assumir agora, escondendo-se por trás de uma sentença que os tira do sério, mostra a sua verdadeira dimensão como estadistas.
Nesse afã de preparar o caminho ao segundo resgate, o Governo não hesitou mesmo em evidenciar um inequívoco autoritarismo. Com a sua reação, de inédita violência, contra o Tribunal Constitucional, Passos Coelho assumiu por inteiro que não é Primeiro-Ministro de um Estado de Direito, antes quer ser governante de um estado de exceção. E agora vem o despacho de Gaspar tornar dispensáveis e ridicularizar todos os ministros e instaurar por decisão administrativa a ditadura do Ministério das Finanças. Lançar as culpas dos nossos males sobre quem tem por função republicana garantir o respeito da lei suprema e aumentar desmesuradamente os poderes de um ministro que, em dois orçamentos sucessivos, mandou a Constituição às urtigas é bem a prova dos pergaminhos democráticos da direita governante.
Mas tudo isto é frágil, tudo isto é dramatização postiça. O fogo político sobre o Tribunal Constitucional é um disfarce do programa de esvaziamento da escola pública, do Serviço Nacional de Saúde e da segurança social pública. Habilidosamente querem-nos convencer de que isso é imprescindível para “honrarmos os nossos compromissos” com os credores, para mantermos a “credibilidade externa”. Tudo falso, tudo mal amanhado. Para “honrarmos os nossos compromissos” o Governo vai contrair um segundo resgate. Entretanto terá destruído o Estado Social de Direito em Portugal. E no fim estaremos com mais dívida para pagar. E com menos democracia.