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17-03-2013        Público [Revista 2]

Estávamos no Campo S. Stefano, em Veneza, e depois de um jantar com um grupo numeroso, preparávamo-nos, já noite escura, para regressar de vaporetto ao apartamento alugado. Manuel Vicente avança connosco lentamente, com as dificuldades de mobilidade que transformava em oportunidade para observar ou fazer conversa. Quando chegámos à vista da ponte dell"Accademia, já com a cidade vazia, olhando para o inclinado lanço de escadas, diz-nos que não sobe. Sem preocupação e sem remédio. Acabou o vaporetto, começou a noite. Com uma diligência que me escapou sempre menos naquele momento, consegui que um motoscafo, um "táxi de água", nos fosse buscar ao Campo S. Vidal. Despedimo-nos da ponte dell"Accademia e da sua exagerada escadaria e seguimos rindo-nos pelo Grande Canal.

Naquela tarde, o Pancho Guedes tinha entrado a direito no Campo delle Gatte, onde estávamos a almoçar. Era 2006, e Pancho estava na cidade por causa de Lisboscópio, a representação de Portugal na Bienal de Veneza, de que era um dos autores. O Pancho e o Manuel Vicente estavam os dois de camisa azul. O Manuel estava até um pouco starstrucked porque o Pancho é imparável. Os dois juntos somavam a parte de leão (que ri) da mais estranha, far out, inconveniente e mal-amada arquitectura portuguesa.

Em Maputo como em Macau, as obras dos dois de camisa azul foram desaparecendo. A Sala de Leitura do Arquivo Histórico já há muito foi eclipsada pela tinta branca e mobiliário de escritório. Em fotografia faz-me lembrar o Shining, de Stanley Kubrick: vermelha, saturada, de um suspense insuportável. Uma típica "sala de leitura", portanto. O Arquivo Histórico de Macau é, apesar disso, ainda hoje, o mais próximo que podemos estar da arquitectura de Manuel Vicente. Até ver: a vida em Macau não pára, e encarregar-se-á de eclipsar a sua obra, até ficarem apenas pedaços de betão e cores gastas. Manuel Vicente não tinha, de qualquer modo, uma visão absoluta ou cloroformizada da arquitectura. Era um glorioso relativista; queria ver de todos os pontos, certo de que lhe faltaria sempre algum. O tão injuriado "relativismo" é isso mesmo: a certeza de que nos falta sempre um ponto de vista. Não é necessariamente a temida "ausência de valores" mas uma procura não euclidiana da "verdade".

Por isso a missa de despedida foi católica, com jazz e bossa nova.

Como nos lembrou o padre Tolentino Mendonça, em comovente homilia, Manuel Vicente tinha uma "espantosa humanidade". Uma exigente humanidade: não nos deixou uma obra completa, fotografada, defendida, mas fragmentos, sinais, conversa, para que a possamos reconstituir como nossa.

Lá fomos os três: sempre de motoscafo, nunca de vaporetto.

Foi um privilégio, Manuel.


 
 
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Jorge Figueira