Na mesma semana em que o Parlamento Europeu rejeitou o projeto de orçamento plurianual da União Europeia para o período 2014-2020, o ex-Presidente do Eurogrupo Jean-Claude Juncker exprimiu ao Der Spiegel a sua preocupação pelas semelhanças entre as circunstâncias da Europa de há 100 anos e o contexto europeu atual. Diz Juncker que os velhos demónios que no passado trouxeram a guerra à Europa “não desapareceram (…) estão apenas adormecidos”.
Pois é. Juncker nem sabe a razão que tem! Perante a vertigem da transformação da violência social em guerra, a Europa unida de hoje é demasiadamente parecida com a Europa segmentada de há um século. Ora, se isto é trágico, o que é mais trágico ainda é que Juncker – e, com ele, toda a elite económica e política que tem governado a Europa – pareça(m) ignorar que foi também pela sua mão que os demónios da guerra acordaram do torpor. Num exercício de candura tocante, ele diz que a razão de ser da “união económica e monetária sempre foi consolidar a paz”, algo que só fica por cumprir porque “demasiados europeus estão a voltar a um espírito regional ou nacional”. Alguém explique a Juncker que o nacionalismo não é uma questão de mau feitio nem nasce do vazio. Alguém lhe explique – e às elites de que ele é porta-voz – que, há cem anos como agora, o nacionalismo foi o refúgio de massas imensas acossadas por políticas de empobrecimento e humilhação. E que são essas políticas – de que Juncker, Barroso, Merkel e o centrão europeu têm sido intérpretes primeiros – que nos estão a atirar de novo para as mãos dos demónios da guerra.
Pôr em alternativa nacionalismo e federalismo é um truque. Porque tanto alimenta os demónios da guerra um nacionalismo de portas fechadas como um federalismo que, sob a capa da “supervisão económica e orçamental”, amarra os povos a uma austeridade sem fim. Um e outro alimentam-se da mesma espiral de empobrecimento e criam um monstro social pronto a explodir em violência bruta.
Jean-Claude Juncker tem razão numa coisa: “uma Europa unida é a única hipótese de o nosso continente não ser excluído do radar do mundo”. Esqueceu-se de acrescentar que a Europa não se unirá do topo para a base, sem participação nem democracia. Houve quem o tentasse pela força e foi derrotado. Há agora quem o tente pela engenharia institucional. Será derrotado também. Não há despotismo iluminado que valha aos arautos de um sonho de paz perpétua que morre às mãos das vidas concretas que têm no castigo do dia-a-dia o seu único horizonte.
É por isso também que um projeto de orçamento que prevê cortes de 8% nas políticas de coesão só pode ser visto como parte do despertar dos demónios a que alude Juncker. É em nome da paz contra os demónios da guerra – da paz que não é só silêncio das armas mas também resposta à violência estrutural da austeridade, do desemprego, da precariedade e da “inevitabilidade” de tudo isto – que este orçamento da UE, que o Pacto Orçamental de que ele é instrumento e que a “governação económica” que institui a austeridade como mandamento máximo têm que ser combatidos.
“Em 1913, muitas pessoas acreditavam que nunca mais haveria uma guerra na Europa. As grandes potências do continente tinham fortes ligações económicas e a convicção geral era a de que simplesmente não podiam permitir-se entrar em conflitos militares." Um homem que pensa assim só podia ter imposto à sua presidência do Eurogrupo um rumo antagónico daquele que impôs. Tal como a ele, "arrepia-me ver como são semelhantes as circunstâncias da Europa em 2013 e as de há 100 anos." É por isso que combato quer o nacionalismo serôdio quer o federalismo aniquilador. É por isso que sou europeísta de esquerda.