Não há direitos que não sejam adquiridos. Por isso, a inflamada retórica do Governo e dos seus ideólogos contra os direitos adquiridos é contra os direitos, ponto final. Quere-os diminuir, quere-os substituir por meras expetativas frágeis, quere-os eliminar. O endeusamento da “flexibilidade” como suposto mandamento supremo da modernidade próspera é o embuste que encobre um programa: precarizar todas as vidas e deixá-las ao sabor da seleção feita pela lei do mais forte.
Pôr os mais novos a lutar contra os mais velhos e pôr os pobres a lutar contra os muito pobres é a estratégia ardilosa que o Governo usa para desqualificar socialmente uma organização social fundada em direitos. Dizem o Governo e os seus ideólogos aos jovens precários e desempregados: a culpa da vossa situação é dos vossos pais, que se instalaram comodamente nos seus empregos para a vida e vos bloqueiam a entrada no mundo profissional com direitos. E acrescentam: se eles aceitassem prescindir de alguns direitos, vocês veriam como se abriam logo as portas do vosso futuro. Dizem o Governo e os seus ideólogos aos pobres: a culpa da vossa situação é dos desempregados a quem temos que pagar subsídio e dos que recebem rendimento mínimo; o dinheiro que lhes pagamos sem que eles trabalhem dava para aumentar, pouco que fosse, os vossos ordenados de trabalhadores. A obscenidade desta mentira é total: a precarização da vida dos pais não substituirá a precarização da vida dos filhos, somar-se-á a ela; a desproteção dos mais pobres não trará os pobres para cima, sugá-los-á para o buraco negro da miséria.
Que sejam jovens precários e adultos reformados a protagonizar o protesto social crescente no país é a prova de que este é o espaço central da disputa que decidirá o futuro do país. O ganho maior da manifestação multitudinária de 2 de março foi esse: a estratégia da guerra de gerações não passará. O Governo perdeu clamorosamente essa batalha, central para o seu projeto político. Que o ativismo da APRE! – um caso notável de afirmação de mobilização e de força de movimento social – se conjugue com o ativismo dos Precários Inflexíveis – idem idem aspas aspas – para trazer para a rua mais de um milhão de pessoas unidas em torno da denúncia da rutura do contrato de confiança que qualquer governo tem que honrar com a população que é suposto servir, eis o maior dos sinais de o Governo falhou mais na previsão de que seria capaz de pôr filhos contra pais do que nas previsões de crescimento, de recessão e de números do desemprego.
Era grisalha a manifestação de 2 de março? Era grisalha e era também adolescente e quarentona. Isso é um bom sinal. Mostra que a luta das pessoas não é contra “os políticos” mas contra políticas concretas que se materializam em folhas de vencimentos e de pensões, em call centres e em empresas de trabalho temporário e em recibos de renda de casa. As pessoas, novas e velhas, que vieram à rua no passado sábado disseram que quem acha que descer o salário mínimo é bom para combater o desemprego e que os pensionistas descontaram para ter reformas mas não estas reformas não tem dignidade para governar o país. Mas, mais que tudo, vieram dizer que não é em nome de regalias corporativas ou geracionais que lutam. É em nome de uma sociedade regulada por direitos que se adquirem e se honram. Vieram dizer algo de essencial: que um país civilizado estima os direitos. E assume o seu cumprimento como a única verdadeira prioridade.