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17-01-2013        Público    [ pág. 43 ]

As recentes declarações do secretário de Estado da Saúde, afirmando que os cidadãos deveriam recorrer menos ao Serviço Nacional de Saúde e responsabilizar-se mais pela sua própria saúde, através de uma maior atenção à prevenção - tudo em nome da alegada defesa da sustentabilidade do SNS -, deslocam para o plano da responsabilidade individual aquilo que é uma incumbência fundamental do Estado. A apologia de um modelo de serviço público de mínimos para tratamento de situações limite tem aqui mais uma expressão clara, que se junta às que outros governantes têm publicitado sobre outras áreas da nossa vida colectiva. Trata-se de uma formulação ideológica clara, de inspiração neoliberal, que faz parte de um discurso que comporta três dimensões essenciais.

Em primeiro lugar, a sujeição da prestação de cuidados de saúde à disciplina do mercado, com a inerente privatização dos meios e equipamentos e, para isso, a sistemática desqualificação da gestão pública dos serviços de saúde. A invocação de alegados abusos e desperdícios, nessa formulação, atinge apenas os que recorrem aos serviços públicos, e não é um problema quando os mesmos recursos, alegadamente escassos, são utilizados sem as mesmas limitações quando o acesso aos cuidados se faz pelo setor privado.

O segundo ingrediente do discurso neoliberal sobre políticas de saúde é a defesa de um sistema de financiamento diferenciado no momento da prestação dos cuidados de saúde. "Quem tem mais deve pagar mais" é a sua máxima. Com uma pequena-grande nuance: é que o financiamento do SNS, condição indispensável para o exercício efetivo do direito à saúde, já assenta no princípio da redistribuição de recursos públicos obtidos através de contribuições e de impostos. É pois a montante da prestação de cuidados de saúde, no momento da arrecadação dos impostos, que devem ser tidas em conta as capacidades diferentes de contribuição financeira dos cidadãos. A isto se opõe a formulação neoliberal, defendendo que a diferenciação se deve fazer no momento em que estes acedem aos cuidados de saúde.

Por fim, o terceiro elemento central desta abordagem ideológica neoliberal das políticas de saúde é justamente o que foi veiculado pelas declarações do secretário de Estado: a dessocialização da saúde-como-responsabilidade e a consequente fragilização da saúde-como-direito. A saúde, própria e dos outros, é aqui uma obrigação de cada um, cumprida através da renúncia e da denúncia de condutas do risco e da vinculação individual aos ditames do complexo médico-industrial. Houve já quem lhe chamasse "saúde persecutória", não por acaso... Essa posição parece ignorar a responsabilidade central do Estado na promoção de saúde e na prevenção da doença, assim como a importância dos determinantes sociais (rendimento, emprego, condições de trabalho, habitação, saneamento, ambiente, educação, organização dos serviços de saúde e, em geral, do Estado social) nas condições de saúde de diferentes setores da população, como tem vindo a ser demonstrado através de um conjunto de estudos, muitos deles patrocinados por entidades como a Organização Mundial de Saúde ou a própria Comissão Europeia.

As declarações do secretário de Estado têm, certamente, o mérito de trazer ao de cima a posição defendida pelo atual Governo e pelas instituições internacionais que, através dele, governam de facto, Portugal, acerca do que deve ser a responsabilidade do Estado perante a saúde dos cidadãos. Mas ela revela, igualmente, uma concepção de como realizar o direito dos cidadãos à proteção da saúde que é contrária à que postula o modelo adotado na Constituição da República Portuguesa, e sobre a qual assenta uma boa parte dos sistemas públicos de saúde no espaço europeu e noutros países do mundo que consagraram, nas suas constituições nacionais, o direito à saúde como um direito fundamental. A defesa do SNS e do direito à saúde está hoje no centro da defesa do próprio regime democrático.


 
 
pessoas
João Arriscado Nunes
José Manuel Pureza