Como considerar a questão da solidariedade? Como é possível conduzir uma vida com base nesse conceito? Que formas práticas pode ela assumir? Julgo que há duas formas de pensar este problema.
Podemos considerar, em primeiro lugar, que a pergunta fulcral para desencadear solidariedade é a formulada por Richard Rorty: "Estás a sofrer?"
Em segundo lugar, há uma acepção mais propriamente política, na qual se encara o sofrimento humano como "a contradição que existe entre a experiência da vida quotidiana, em muitas partes do mundo, e a ideia, o horizonte, de uma vida decente" (Santos, 2004). Em que mundo vivemos, sob que hegemonia? Para Boaventura de Sousa Santos, "o neoliberalismo é uma das utopias conservadoras para as quais o único critério de eficácia é o mercado ou as leis do mercado". "Qualquer outro critério ético é desvalorizado como ineficaz. Nega-se radicalmente a existência de alternativas à realidade do presente e procura-se desacreditar quaisquer alternativas precisamente por serem utópicas, idealistas, irrealistas" (Santos, 2011). Esta "ética" da eficácia capitalista é avaliada de forma peculiar pelos detentores do poder - continua a ser vista pelos conservadores como a única eficaz, mesmo quando falha totalmente - e é justamente no meio de um processo violento desta natureza que estamos na passagem para 2013, em Portugal. Na Europa, que se move numa lentidão institucional exasperante e que, no essencial, se rege pelos mesmos critérios e pelos mesmos valores conservadores neoliberais, radica a origem do imenso sofrimento humano que decorre do desemprego galopante, dos salários cada vez mais baixos para as camadas mais pobres, do aumento das desigualdades, do desmantelamento do Estado social, visto como insustentável, de acordo com esse critério de análise - o mercado como única medida de eficácia - e, desse modo, aumenta-se o sofrimento humano de milhões de pessoas de forma brutal e persistente.
É forçoso sobrepor os dois planos: ter em conta a pergunta de Rorty "Estás a sofrer?" e pôr fortemente em questão a pretensão de única via possível atribuída aos "mercados". É óbvio que há alternativas, como houve com Lula da Silva no Brasil ? muitos milhões de pessoas retirados da pobreza -, como há, mesmo nos EUA, com Obama, como se viu no Obama Care, apesar do tremendo combate que teve de travar com a direita no quadro do complexo sistema político americano. Mas, na Europa, segue-se o caminho inverso: empobrecer as populações e retirar-lhes muitos dos sistemas sociais de apoios estabelecidos. Entre as consequências da acção deste Governo e das acções comandadas pela troika europeia e o FMI - pretexto ou não - verifica-se um regresso da pobreza de forma nunca vista desde o regime de Salazar. Mas as alternativas políticas que existem, ao contrário do que o discurso hegemónico quer fazer crer, não respondem, por si só e neste momento particular, à pergunta de Rorty. Vejamos a questão considerando os diferentes tempos simultâneos em jogo.
Do ponto de vista das necessidades reais do ser humano em sofrimento, o seu tempo existencial de vida contínua não se pode medir apenas no tempo médio das alternâncias políticas, nem no tempo longo das crises estruturais.
O tempo da crise é o tempo das crises económicas - que podem durar entre 25 e 50 anos - sem que, no entanto, a sua presença na actualidade mediática deixe de nos transmitir a sensação de que tudo está por um fio: um tempo médio ou longo, narrado como tempo frenético. Daí a estranha sensação de uma imobilidade de fundo e de uma superfície agitada e frenética. A luta política entre os vários responsáveis pela política global prossegue com o anúncio de medidas para combater a crise que se revelam ineficazes para combater a crise e são mesmo criadores de crise. Aquilo que faz a actualidade das notícias manifesta-se de acordo com os critérios do tempo frenético dos media. Também os famosos "mercados" financeiros - lugar por excelência da luta dos especuladores - é igualmente regulado pelo tempo frenético. Na especulação financeira, num só dia, biliões de dólares ou euros podem mudar de lugar, de proprietário, de banco, de multimilionário. O tempo da economia, no sentido da acção humana produtora de bens e mercadorias e das suas trocas, é muito mais lento do que o movimento acelerado da troca de capitais. A tecnologia e a Internet permitiram essa aceleração brutal.
Mas para um desempregado - aí colocado pela voragem destrutiva das medidas de austeridade, até aqui o único remédio erroneamente proclamado para a crise - o tempo que domina a sua vida é existencial e vive-se de acordo com o ritmo da pulsação cardíaca, ou seja, não pára, não tem tempo para parar; é regulado pela necessidade de encontrar todos os dias, no pior dos casos, uma forma de sobreviver, uma forma de comer, uma forma de manter a vontade de viver. É, desse modo, o tempo da existência quotidiana dos humanos; em cada minuto, em cada dia, pode passar do espanto para a revolta, da fúria para um sossego de fadiga, da luta convicta para a submissão e a desistência. É um tempo determinado pela crise, mas que obriga muitas pessoas a acções diárias de sobrevivência: como vou arranjar dinheiro para a casa, para dar à mãe, para dar aos filhos, para pagar a escola, onde vou viver depois de ir entregar a casa ao banco, etc.
Os políticos, os cientistas sociais, os economistas, os intelectuais, vivem numa espécie de tempo intermédio: analisar, escrever, decretar, interpretar diariamente aquilo que envia sinais provenientes da profundeza do tempo longo da economia, da rapidez dos movimentos rápidos das bolsas financeiras e, nos casos mais lúcidos, interpretar igualmente os sinais inquietantes enviados para o ambiente, pelos movimentos lentíssimos do planeta, na sua rejeição imparável da agressão violenta dos humanos das sociedades capitalistas industriais do mundo. A acção deste vasto grupo, em particular dos políticos, sendo diária, só manifesta mudanças de vulto nos períodos eleitorais-atualmente-carnavalescos ou nos períodos de crise política aparente ou eventual. Daí, desse tempo intermédio da democracia-actualmente-existente, saem, por vezes, sinais de alguma esperança para os que sofrem a crise e sinais de preocupação para os que lucram com ela. Os sinais são os mesmos; a sua interpretação é que varia conforme são vistos por pobres, motivados pela pulsão da sobrevivência, ou por ricos, motivados pela pulsão destrutiva da acumulação de capital. Esta divisão não é retórica, é real.
Esta multiplicidade de tempos simultâneos parece mostrar que a tese de Walter Benjamin de que, nas revoluções, "o tempo sai dos eixos" ? de Hamlet, "the time is out of joint" - se tornou o nosso tempo diário "normal", tal como na sua outra brilhante intuição de que nas sociedades capitalistas "o estado de excepção é a regra". Na crise todos estes tempos se misturam e interligam.
Entronca neste ponto a divergência entre duas tradições de solidariedade: a católica progressista? existente desde o antigo regime? sob múltiplas formas e a solidariedade no sentido político mais lato, vista como horizonte político futuro de uma sociedade mais justa. Esta visão política, sobretudo a da tradição marxista-leninista, tinha em tempos uma tal confiança no determinismo histórico, que punha em causa toda e qualquer acção passível de ser criticada como "reformista", ou mesmo "solidária". Corria, em 1970-71, entre os movimentos associativos estudantis de Lisboa, uma anedota, provavelmente inventada - mas lúcida na sua invenção - sobre um dirigente associativo do qual se dizia que dava pontapés no engraxador para agudizar as contradições de classe e, desse modo, favorecer a vinda do socialismo, o desenrolar mais rápido do processo histórico já conhecido. Hoje sabemos que não existe determinismo histórico algum que conduza necessariamente a um destino já previamente conhecido. Apenas a acção das pessoas do mundo permitirá sair desta crise pelo lado da emancipação e da solidariedade.
Nesse sentido, regressa aqui uma forma de tempo frenético que talvez afecte também os partidos das esquerdas: a luta parlamentar diária, a luta pelo poder entre si e a luta contra o Governo de direita que absorve, de forma diária, a sua concentração e a sua acção, imersa na vida política aparentemente rápida. Essa actividade, certamente importante, poderá, talvez, fazer esquecer o tempo presente em favor do tempo médio ou longo, no qual se trava a luta fundamental que comanda a evolução das sociedades. Ora, para muitas pessoas em sofrimento, não há tempo para esperar pela História.
Sendo certo que, durante o regime de Salazar, "a caridade cristã" pôde ser vista como uma forma de eternizar o estado de coisas e que essa memória ainda nos afecta, o facto é que, no seu tempo existencial de vida quotidiana, os excluídos, os pobres, os desempregados, os que recorrem ao Banco Alimentar e às Misericórdias, às Sopas dos Pobres, etc., não têm tempo para esperar pelo desenlace da luta política, pela queda do Governo, pelo fim da crise, ou outras projecções que se podem desejar ou especular.
A atitude a tomar será considerar que, enquanto não chega o momento da rebelião - como passo para "o momento da solidariedade na construção de uma tópica para a emancipação" ? e se está no momento do sofrimento humano, é necessário considerar a pergunta de Rorty e responder-lhe com acções imediatas, independentemente dos eventuais pressupostos ideológicos que presidem àqueles que as desencadeiam. É necessário sobrepor os dois momentos: o momento político das lutas de médio e longo prazo e o momento de solidariedade activa face ao sofrimento humano, evitando colocá-los como alternativas opostas e contraditórias entre as quais é forçoso escolher. Agir agora: "Estás a sofrer?"