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24-12-2012        Público    [ 46/47 ]

O termo “privataria” foi cunhado por um grande jornalista brasileiro, Elio Gaspari, e popularizado por um dos mais brilhantes jornalistas investigativos do Brasil, Amaury Ribeiro Jr. O livro deste último A Privataria Tucana (São Paulo, Geração Editorial 2011), um best-seller, relata com grande solidez documental o processo ruinoso das privatizações levado a cabo no Brasil durante a década de 1990.

A investigação, que durou dez anos, não só denuncia a “selvajaria neoliberal dos anos 90” que dizimou o património público brasileiro, deixando o pais mais pobre e os ricos mais ricos, como também estabelece de forma convincente a conexão entre a onda privatizante e a abertura de contas sigilosas e de empresas de fachada nos paraísos fiscais das Caraíbas, onde se lava o dinheiro sujo da corrupção, das comissões e “propinas” ilegais arrecadadas pelos intermediários e facilitadores dos negócios.

Aconselho a leitura do livro aos portugueses que não se conformam com o discurso do “interesse nacional” para legitimar a dilapidação da riqueza nacional em curso, a todos os dirigentes políticos que se sentem perplexos perante a rapidez e a opacidade com que as privatizações ocorrem e aos magistrados do Ministério Publico e investigadores da PJ por suspeitar que vão ter muito trabalho pela frente se tiverem meios e coragem.

As privatizações não são necessariamente “privataria”. São-no quando os interesses nacionais são dolosamente prejudicados para permitir o enriquecimento ilícito daqueles que, em posições de mando ou de favorecimento político, comandam ou influenciam as negociações e as decisões em favor de interesses privados. As privatizações não têm nada a ver com racionalidade económica. São o resultado de opções ideológicas servidas por discursos que escondem as suas verdadeiras motivações.

No Brasil, o discurso foi o de transformar as privatizações numa “condição para o país entrar na modernidade”. Em Portugal, o discurso é o do interesse nacional, tutelado pela troika, em reduzir a dívida e ganhar competitividade. Em ambos os países, a motivação real é criar novas áreas de acumulação e lucro para o capital. No caso português isso passa pela destruição tanto do sector empresarial do Estado como do Estado social. No último caso, sobretudo, trata-se de uma opção ideológica de quem usa a crise para impor medidas que nunca poderia legitimar por via eleitoral. Para termos uma ideia da carga ideológica por detrás das privatizações, supostamente necessárias para reduzir a dívida pública, basta ler o orçamento de 2013: a receita total das privatizações, de 2011 a 2013, será de 3700 milhões de euros, ou seja, menos de 2% da dívida pública… A “privataria” tende a ocorrer quando se trata de processos maciços de privatização. Joseph Stiglitz cunhou um neologismo ácido para definir a onda privatista que avassalou as economias do Terceiro Mundo nos anos 80 e 90, “briberization”, um termo cujo significado se aproxima do de “privataria”.

No caso português, a tutela externa e a dívida que o Governo tem interesse em não renegociar favorecem vendas em saldo e, com isso, oportunidades de compensação especial em ganhos ilícitos para os que as tornam possíveis. Como a corrupção não tem uma capacidade infinita de inovação, é de prever que muito do que se passou no Brasil se esteja a passar em Portugal. É preocupante que alguns dos baluartes da segunda geração de corrupção do Brasil, aliás já condenados, surjam nas notícias das privatizações em Portugal. É o caso de José Dirceu (PÚBLICO, 17 de Janeiro).

A “privataria” ocorre por via da articulação entre dois mundos: o mundo das privatizações – conseguir condições particularmente favoráveis aos investidores – e o submundo da corrupção – lavar o dinheiro das comissões ilegais recebidas. No que respeita ao primeiro mundo, alguns dos estratagemas da “privataria” incluem: criar na opinião pública imagens negativas sobre a gestão ou o valor das empresas estatais; fazer investimentos ou subir os preços dos serviços antes dos leilões; absorver dívidas para tornar as empresas mais atrativas ou permitir que as dívidas sejam contabilizadas sem criteriosa definição do seu montante e condições; definir parâmetros que beneficiem o candidato que se pretende privilegiar e que idealmente o transformem em candidato único; passar ilegalmente informação estratégica com o mesmo objetivo; confiar em serviços de consultoria, fazendo vista grossa a possíveis conflitos de interesses; permitir que os compradores, em vez de trazerem capital próprio, contraiam empréstimos no exterior que acabarão por fazer crescer a dívida externa; permitir que fundos públicos sejam usados para alienar património público em favor de interesses privados.

O submundo da corrupção reside na lavagem do dinheiro. Trata-se da transferência do dinheiro das comissões para paraísos fiscais mediante a criação de empresas off  shores (de facto, nada mais do que caixas postais), onde os verdadeiros titulares das contas desaparecem sob o nome dos seus procuradores. Aí o dinheiro pousa, repousa e, depois de lavado, é repatriado para investimentos pessoais ou financiamento de partidos.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos



 
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