Para além da origem bíblica da ideia de povo (o Povo de Deus), os processos históricos de secularização progressiva das sociedades europeias deram origem a diferentes conceções acerca do “povo” e da cultura “folk” (que lhe serviu de suporte). Pensar o “povo” enquanto categoria sociológica implica refletir sobre a sua relação – ambígua ou conflitual – com as “elites”. É claro que essa relação evoluiu ao longo das épocas, mas, nos dias que correm, e perante a crise que hoje enfrentamos, a ideia de povo enquanto sujeito coletivo ganha uma nova aura e força sociopolítica.
Pode dizer-se que, durante muitos séculos, fora da “sociedade de corte”, praticamente só existia o povo – apesar da sua diversidade e das revoltas pontuais –, que era, em geral, conotado com “ralé”, miséria, trabalho, gente “sem eira nem beira”, mas visto como passivo e submisso (dependendo do “pão e circo”). Só em ocasiões especiais (como o carnaval, por exemplo) eram tolerados às classes populares alguns atos transgressivos, onde se podiam inverter pontualmente os papéis. A irreverência corrosiva do “riso carnavalesco” (bem retratados por Rabelais e analisados por Mikhail Bakhtin) podia ainda estender-se a outros meios populares da Idade Média. A resistência à ordem vigente e às elites exprimia-se na blasfémia e no obsceno, na exibição apoteótica e desregrada do corpo grotesco, o “corpo baixo” da impureza e da desproporção, na bebida intoxicante e na promiscuidade sexual, presentes em ambientes como a taberna e o bordel, que nas principais capitais europeias do século XIX se tornaram atrativos para artistas e intelectuais, alguns oriundos da aristocracia decadente, em rutura com as convenções da boa sociedade burguesa.
Porém, à medida que se consolidou a modernidade e o Estado burguês, a visão “exótica” ou bucólica da cultura popular alternou-se substancialmente. Além da imagem suja e desbragada, segundo o olhar da burguesia triunfante, o povo passa a confundir- se com a “classe trabalhadora” e cresce-lhe a fama de violento e desordeiro, pelo que a preocupação principal passou a ser “localizar, conter e incorporar as multidões perigosas” (P. Burke). A Revolução Industrial e as lutas sociais do século XIX deram um novo protagonismo à classe operária, erigida em vanguarda do povo. Do ambiente rural aos centros urbanos, da pequena tradição às grandes convulsões de massas e concentrações fabris, do povo passivo e humilde ao operariado reivindicativo, com a institucionalização das nações modernas o “Povo” afirma-se como sujeito da história.
Mas foi sobretudo ao longo do século XX, depois de duas guerras mundiais que tiveram a Europa como palco, que se assistiu a uma rápida e nova segmentação social, com o crescimento do Estado social e das classes médias assalariadas, o que significou um esforço de demarcação destas em relação ao povo, tentando imitar as elites, em busca de modos de vida urbanos marcados pela cultura de massas. Embora nas democracias avançadas as elites políticas modernas também tenham promovido novas formas de legitimidade fundadas na defesa dos mais desfavorecidos e em melhores padrões de bem-estar e justiça social para o povo, é sabido que os velhos desígnios do Iluminismo e da ideologia social-democrata (que deram corpo a tais promessas) há muito entraram em degenerescência, dando lugar a novas cliques dirigentes que, em pleno século XXI, recriaram o desprezo ancestral para com o povo. A diferença é que a displicência aristocrática foi substituída pela arrogância do “novo-riquismo”, ou seja, ressurge um novo “ethos” elitista, mas paradoxalmente, sem verdadeira elite.
A hostilidade desta nova “casta”, que alcançou o poder político ao colo do poder económico e das redes de interesses, tornou-se insuportável para quem trabalha. Os seus tiques, os gestos e desabafos de ocasião expostos nas imagens televisivas, são bem ilustrativos do seu absoluto desprezo pelos “de baixo”. Perante o acelerado desmantelamento da classe média e o seu regresso ao rol dos pobres e precarizados, é bem provável que esteja iminente o reerguer de um novo sujeito da mudança, já não o proletariado do século passado, mas a revolta de uma grande variedade de camadas sociais – mulheres e homens de todas as idades, funcionários, professores, militares, jovens precários, estudantes, artistas, pensionistas, policias, empresários, desempregados, sindicalistas, domésticas, agricultores, agentes culturais, sindicalistas, etc. –, ou seja, 38 anos depois do 25 de Abril, é de novo o Povo (com P grande) que se ergue, a marcar a distância abissal que o separa da elite privilegiada.