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03-11-2012        Público

Para além da origem bíblica da ideia de povo (o Povo de Deus), os processos  históricos de secularização progressiva das  sociedades  europeias  deram origem a  diferentes conceções acerca do  “povo” e da cultura  “folk”  (que lhe serviu de suporte).  Pensar o  “povo”  enquanto categoria sociológica  implica refletir sobre a  sua  relação –  ambígua ou conflitual – com as “elites”. É claro que essa relação evoluiu ao longo das  épocas, mas, nos dias que correm, e perante a crise que hoje enfrentamos, a ideia de  povo enquanto sujeito coletivo ganha uma nova aura e força sociopolítica.

Pode dizer-se que, durante muitos séculos, fora da  “sociedade  de corte”, praticamente só existia o povo – apesar da sua diversidade e das revoltas pontuais –,  que era, em geral, conotado com “ralé”, miséria, trabalho, gente “sem eira nem beira”,  mas visto como passivo e submisso (dependendo do “pão e circo”). Só  em ocasiões  especiais (como o carnaval, por exemplo) eram tolerados às classes populares alguns  atos  transgressivos, onde  se podiam  inverter  pontualmente  os  papéis.  A  irreverência  corrosiva do “riso carnavalesco” (bem retratados por Rabelais e analisados por Mikhail  Bakhtin)  podia  ainda  estender-se a outros  meios  populares da Idade Média. A  resistência à ordem vigente e às elites exprimia-se na  blasfémia e  no obsceno,  na  exibição apoteótica e desregrada do corpo grotesco, o “corpo baixo” da impureza e da  desproporção,  na  bebida intoxicante e  na promiscuidade sexual, presentes  em  ambientes como a taberna e o bordel, que nas principais capitais europeias do século XIX se tornaram atrativos para artistas e intelectuais, alguns  oriundos da aristocracia  decadente, em rutura com as convenções da boa sociedade burguesa.

Porém, à medida que se consolidou a modernidade e o Estado burguês,  a visão  “exótica” ou bucólica da cultura popular alternou-se substancialmente. Além da imagem  suja e desbragada, segundo o olhar da burguesia triunfante, o povo passa a confundir- se com a “classe trabalhadora” e cresce-lhe a fama de violento e desordeiro, pelo que a  preocupação  principal passou a ser  “localizar,  conter e  incorporar  as multidões  perigosas” (P. Burke). A Revolução Industrial e as lutas sociais do século XIX deram um  novo protagonismo à classe operária, erigida em vanguarda do povo. Do ambiente rural  aos centros urbanos, da pequena tradição às grandes convulsões de massas  e  concentrações fabris, do povo passivo  e humilde  ao operariado reivindicativo,  com  a  institucionalização das nações modernas o “Povo” afirma-se como sujeito da história. 
Mas  foi sobretudo ao longo do século XX, depois de duas guerras mundiais que  tiveram a Europa como palco, que se assistiu a uma rápida e nova segmentação social,  com o crescimento  do Estado social e  das classes  médias assalariadas, o que  significou um  esforço de demarcação  destas  em relação ao povo, tentando imitar as  elites, em busca de modos de vida urbanos marcados pela cultura de massas. Embora  nas democracias avançadas as elites políticas modernas  também  tenham  promovido  novas formas de legitimidade  fundadas  na defesa  dos mais desfavorecidos  e em  melhores  padrões de bem-estar e justiça social  para o povo,  é sabido que  os velhos  desígnios do Iluminismo e da ideologia social-democrata  (que deram corpo  a tais  promessas)  há muito entraram em degenerescência, dando lugar a novas cliques  dirigentes que, em pleno século XXI,  recriaram o desprezo ancestral para com o povo. A diferença é que a displicência aristocrática foi substituída pela arrogância do  “novo-riquismo”, ou seja,  ressurge um novo “ethos” elitista, mas  paradoxalmente,  sem verdadeira elite. 

A hostilidade desta nova “casta”, que alcançou o poder político ao colo do poder  económico e das  redes de interesses,  tornou-se insuportável para  quem trabalha. Os  seus tiques, os gestos e desabafos de ocasião expostos nas  imagens televisivas, são  bem ilustrativos  do seu absoluto  desprezo  pelos “de baixo”.  Perante o acelerado desmantelamento da classe média e o seu regresso ao rol dos pobres e precarizados, é  bem provável que esteja iminente o reerguer de um novo sujeito da mudança, já não o proletariado do século passado, mas a revolta de uma grande variedade de camadas sociais – mulheres e homens de todas as idades,  funcionários, professores, militares, jovens precários,  estudantes,  artistas,  pensionistas,  policias,  empresários, desempregados, sindicalistas, domésticas, agricultores, agentes culturais, sindicalistas, etc. –, ou seja, 38 anos depois do 25 de Abril, é de novo o Povo (com P grande) que se ergue, a marcar a distância abissal que o separa da elite privilegiada.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
social-democracia    proletariado    povo