Os dados estão lançados e não há como escapar à questão que levantam: Portugal é um negócio ou é uma democracia? Para o Governo e seus satélites, Portugal é um negócio. Pese embora o escândalo das contribuições para a segurança social (TSU), o confisco de mais um salário aos trabalhadores portugueses e a sua transferência para os patrões, o que de mais grave e irreversível está a acontecer diz respeito às privatizações e aos negócios internacionais que elas propiciam. O intermediário desses negócios chama-se António Borges, um agente opaco, como todos os agentes-sombra ou homens de mão. Ao contrário do que parece, não é um intermediário neutro e muito menos um zelador dos interesses nacionais. É um agente da Goldman Sachs com passaporte português. O seu negócio principal é venda de activos nacionais a preço de saldo, mas também está interessado em entregar à Monsanto a produção agrícola transgénica e a outras multinacionais, os recursos naturais do país. Se tiver poder e oportunidade, este homem causará imenso dano ao país.
Este é o primeiro perigo que os portugueses enfrentam. O segundo perigo é tentar neutralizar o primeiro através da demissão do actual Governo e da nomeação de um Governo de salvação nacional liderado por um tecnocrata, tipo Lucas Papademus ou Mário Monti. Os portugueses estão na rua depois do estado de choque em que mais uma dose das medidas de austeridade os mergulhou. Estão a ver, como já viram os gregos e os espanhóis, que essas medidas dão resultados opostos aos que proclamam e não oferecem outra alternativa senão mais medidas ainda mais gravosas. Em face disto, o Governo, com a sua indescritível insensibilidade social, dividiu o seu bloco de apoio e perdeu legitimidade perante os portugueses. O país pode em breve tornar-se ingovernável. Os portugueses estão numa situação de emergência que os pode colocar para além da divisão entre esquerda e direita, o que, sobretudo no contexto português, é preocupante. Perante isto, a tentação pode ser a de procurar garantir a estabilidade a todo o custo, recorrendo a um governo de salvação nacional. Não funcionará, como não funcionou na Grécia (na Itália ocorreu pré-troika e o resultado é incerto). O novo governo dará continuidade ao memorando da troika e os problemas de fundo voltarão com a mesma intensidade.
A solução para estes perigos tem de decorrer de dois exercícios normais mas exigentes das instituições democráticas. Quer queira quer não, o Presidente da República estará no centro de ambos. O de mais curto prazo tem a ver com o próximo orçamento que, se contiver as medidas anunciadas, é certamente inconstitucional. Compete ao Tribunal Constitucional fazer tal verificação perante uma solicitação de fiscalização preventiva. Se o TC decidir pela inconstitucionalidade, Borges, Gaspar e seus acólitos terão de prestar contas aos seus patrões internacionais mas os portugueses concluirão que é bom ter tribunais independentes e que isso só é possível em democracia. E ficará também patente que as instituições não se deixaram chantagear pelo golpe baixo da troika ao não ter disponibilizado a última tranche do financiamento até à discussão do orçamento, apesar de ter aprovado o desempenho do governo.
O segundo exercício são as eleições antecipadas. Pode levar mais ou menos tempo mas os portugueses devem ser chamados a pronunciar-se sobre a actual situação do país e as propostas de governação que forem submetidas ao sufrágio. Aliás, as instituições europeias vêem com preocupação o aumento da agitação social na zona euro e recomendam a renovação dos consensos. A própria troika reclama que o seu receituário deve contar com o apoio social. Existe consenso quanto à continuação da austeridade inscrita no memorando? Em democracia não há outro modo de o aferir senão através de eleições. Esta solução é particularmente exigente porque as eleições só fazem sentido se os partidos estiverem preparados para elas e tiverem soluções credíveis para o descalabro a que este Governo conduziu o país. Duas condições parecem indispensáveis. Por um lado, um entendimento de convergência com incidência pré- ou pós-eleitoral entre o PS, o BE e o PCP ou, se tal não for possível, entre o PS e um dos dois últimos. Por outro lado, bases programáticas de convergência que mostrem aos portugueses as possibilidades concretas de resgatar a dignidade do país. Por ironia, a segunda condição, sendo mais complexa, é a que avança mais neste momento, plasmando-se na ampla convergência de forças democráticas que sustenta o próximo Congresso Democrático das Alternativas e nas bases programáticas que dele podem surgir. Os partidos terão aí uma boa base de trabalho.
Ambos os exercícios pressupõem a desobediência democrática ao memorando da troika. Como tenho vindo a defender, a democracia portuguesa não sobreviverá ao cumprimento pleno dele.