Sou do tempo das “curvinhas do Marão”. Desço o IP4 e observo o viaduto “sobre o vale do rio Corgo”, quase três quilómetros de ponte na auto-estrada transmontana, a chegar a Vila Real. O vão principal tem trezentos metros. O rio Corgo sempre foi muito mais modesto, não sei se está preparado para crescer. É talvez uma nova tipologia que se inaugura aqui: a ponte que acompanha o rio.
Foi preciso construírem-se centenas de túneis e viadutos na Madeira para o tempo chegar a Vila Real, uma ilha discreta a cem quilómetros da segunda cidade do país. Não chegou ainda, exactamente, já que os túneis estão parados, mas deverá haver uma luz ao fundo.
Vila Real, ao contrário da Madeira, já alcançou a independência. É muito mais do que o “para lá do Marão…”. Talvez isso explique o silêncio e a distância de figuras públicas da cidade, como António Barreto, que ninguém se lembra de ter levantado um braço, a não ser para fazer citações castiças do transmontano. Ou Pedro Passos Coelho, que chegou muito longe. É verdade que a cidade não se deslumbra com os seus filhos maiores, trata todos com igual indiferença. Lisboa agradece não ser incomodada.
Vila Real é um lugar onde a arquitectura conta tudo. No final dos anos 1970, com excepção do mês das corridas, no Circuito Internacional, vivia-se a preto e branco. Lembro-me de encontrar, por essa altura, um amigo na Rua Direita e de falarmos sobre o Fear of Music dos Talking Heads. As lojas são hoje as mesmas desse dia, praticamente. Mas estão fechadas.
A cor chegou com os Pioledo, no início dos anos 1980, um grupo de arquitectos formados no Porto e em Lisboa que além de muito talento tinham ambição, o que em Vila Real é considerado excêntrico. A universidade, entretanto, nunca chegou a arrancar como instituição da cidade, para lá dos bares e da tradicional folia. O Palácio de Mateus, agora notabilizado na avaliação das fundações, sempre pareceu existir apesar de Vila Real. Como uma nuvem barroca.
Com as cores chegou também, mais do que o famoso caos urbanístico, uma ordem desurbanística que implicava uma meticulosa luta de edifícios contra edifícios, rotundas contra rotundas. A recta da meta do mítico Circuito Internacional desapareceu de um dia para o outro, trucidada por tanta desta collage, mais ruidosa do que o mais potente motor que alguma vez aí soou.
Agora chega-nos a ponte sobre o Corgo, um empreendimento que transita da época anteriormente conhecida como europeia. Para lá das curvas de nível, da topografia, até mesmo da realidade. Correndo excessiva, cheia de pressa e de tirantes, a caminho de Quintanilha. Uma verdadeira obra de arte: um elefante branco funcional. As “curvinhas do Marão” passadas a ferro; a horizontalização final do país das auto-estradas. Cruzando, a sul, a cidade independente e resignada de Vila Real.