A queda do avião F-4 turco no passado dia 22 de Junho, por ação das forças armadas sírias, constituiu mais um importante episódio nas relações entre a Turquia e a Síria que têm, desde o final da Guerra Fria, oscilado entre a iminência do conflito armado (1998) e a aproximação diplomática e comercial (sobretudo a partir de 2004). A "chegada" da Primavera Árabe à Síria no início de 2011 levou a uma nova inversão no relacionamento entre Ancara e Damasco, em resultado da implacável resposta de Bashar al-Assad ao crescente descontentamento popular dos seus cidadãos.
Desde então o país tornou-se um cenário de guerra, com a morte de mais de quinze mil pessoas e a fuga de cerca de 45 mil para a Turquia (num total de mais de 120 mil). Independentemente da vontade política de Ancara, há um certo determinismo geográfico (Turquia e Síria partilham uma fronteira de 911km) que tem levado a Turquia a um envolvimento ativo no conflito. Inicialmente tentou uma aproximação amigável, fazendo uso das boas relações que mantinha com o regime de Bashar al-Assad (em 2010 o valor das trocas comerciais entre os dois países correspondeu a 2.7 mil milhões de dólares). O fracasso dessa aproximação obrigou Ancara a adotar uma posição progressivamente mais crítica face ao regime de Damasco.
Para lá da constante pressão diplomática junto dos países vizinhos, das Nações Unidas e da NATO no sentido de pôr fim à violência do regime sírio, a atuação da Turquia tem-se centrado na dimensão humanitária do conflito, tendo para isso aberto as suas fronteiras a milhares de refugiados sírios. A Turquia encontra-se numa posição particularmente difícil, estando ciente da delicadeza dos equilíbrios regionais de poder envolvidos no conflito, nomeadamente o Irão (que se ofereceu para mediar as relações entre a Turquia e a Síria) e a Rússia com quem a Turquia mantém um estreito relacionamento económico. Demonstra igualmente compreender que estão em jogo diversas questões, entre as quais o papel do Islão no futuro político da Síria ou, mais sensível ainda, o equilíbrio entre xiismo e sunismo no Médio Oriente. Questões com as quais pretende evitar um envolvimento excessivo, tanto por razões de equilíbrios políticos internos (sobretudo com o poder militar e judicial), como pela sua estratégia de política externa, alicerçada nos "problemas zero" com a vizinhança (algo que tem sido difícil de manter no contexto da Primavera Árabe e, em particular, no conflito sírio). Contudo, parece no entanto aceitar que a inação não é uma opção num conflito cada vez mais internacionalizado e cujas consequências afetam diariamente não só a sua estabilidade interna, como os seus interesses na região.
Perante este cenário, a Turquia tem vindo a reforçar (sobretudo desde final de Junho) o seu contingente militar na fronteira com a Síria. Apesar da posição ambígua que a Turquia tem mantido relativamente a um apoio direto às forças rebeldes sírias, relatos provenientes da região indicam igualmente que esse apoio direto é uma realidade, com a aparente criação de um centro de operações na região de Adana, a partir do qual a Turquia (juntamente com o Qatar e a Arábia Saudita) providencia apoio logístico e militar aos movimentos de oposição síria.
Em Ancara, muitos começam a pensar numa Síria pós-Bashar al-Assad e nas potenciais consequências internas de uma possível fragmentação do país. No norte sírio começa-se a formar um enclave curdo que poderia levar no médio prazo à formação de um estado que incluísse o Curdistão iraquiano e sírio. Isso não passa, contudo, de um projeto por enquanto sem grande viabilidade, na medida em que as lideranças políticas de ambas as regiões parecem mais interessadas no desenvolvimento de um relacionamento sólido com Ancara, do que no redesenho geopolítico da região. O que a Turquia receia, sobretudo, é que o Curdistão sírio se torne numa base de apoio para o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) com quem manteve um violento conflito armado durante as décadas de 80 e 90 e que ainda hoje leva a cabo ataques e atentados armados na Turquia. O Partido da União Democrática (PYD), aparentemente ligado ao PKK, domina várias cidades no norte da Síria, o que faz aumentar os receios de um recrudescimento do conflito particularmente no Sudeste da Turquia (região maioritariamente curda). Tal como no norte do Iraque (controlado pelo Governo Regional do Curdistão), onde a Turquia frequentemente leva a cabo ataques aéreos e incursões terrestres contra as bases do PKK, o mesmo poderia ocorrer na Síria, caso fosse claro para Ancara que o PKK estava a utilizar a região como nova base para os seus ataques.
Assim, como é possível constatar, para a Turquia, tal como para os outros atores chave da região, o conflito na Síria representa muito mais que a mera sobrevivência do regime de Bashar al-Assad. Trata-se de uma guerra que levará ao redesenho do mapa geopolítico da região e, sobretudo, à definição de novos equilíbrios de poder, o que trará consequências externas, mas também internas para esses atores chave, como o demonstra a preocupação de Ancara com o eventual desmembramento da Síria e criação de uma região dominada pelos curdos sírios. Também por isso, a onda de contestação popular que teve o seu início no final de 2010 na Tunísia corre agora o risco de terminar na Síria sob a forma de uma interminável guerra por procuração.