Centro de Estudos Sociais
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02-08-2012        Público    [ pág. 47 ]

O modelo social do Ocidente foi, em larga medida, construído à sombra da ideia de mobilidade social. Quer nos regimes mais liberais (como os EUA) onde a iniciativa individual e o sucesso profissional assentam no critério do mérito, quer em modelos de matriz social-democrata, onde o Estado deveria ajudar os mais carenciados a adquirir as competências para tal, o princípio geral era o de que a sociedade – e as suas instituições – reconhece e premeia as capacidades e competência dos indivíduos. A escola, a profissão e o casamento foram considerados os principais canais de mobilidade ascendente. Sociedades com barreiras de classe frágeis e permeáveis, como as democracias liberais, são aquelas onde a mobilidade social é suposto ocorrer naturalmente. As fronteiras de classe são abertas e nessa medida tende a esbater-se a "solidariedade de classe";; e vice versa: quanto menos esta funcione mais intensos serão os fluxos de mobilidade social. Para cima; sempre para cima (!), pois, foi esse o cliché que se instalou no imaginário popular e das classes médias do mundo ocidental.

Um dos problemas desta conceção, de raiz americana, é que a sociedade é pensada como um campo estático e passivo, um cenário onde os indivíduos atomisticamente correm em busca do sucesso e do reconhecimento. Trata-se de uma teoria da "escolha racional"; fundada na ideia da autodeterminação dos indivíduos, viciados na competição entre si, numa "corrida"; onde, naturalmente, só os melhores podem vencer e chegar ao topo. Como se não existissem relações de poder em favor de quem monopoliza riqueza e prestígio. Essa foi a visão de um modelo de sociedade "meritocrática"; – na verdade uma ideologia, mas a que o sucesso económico de alguns e as políticas públicas conferiram credibilidade – que convenceu milhões de cidadãos e, nessa medida, alimentou os sonhos de ascensão social da classe média assalariada.

Ora, se essa narrativa foi eficaz não foi porque traduzisse a realidade social da ordem capitalista (com mais mercado ou com mais Estado) mas sobretudo pela opacidade que criou. Por isso mesmo é de ideologia que se trata (no sentido sociológico do termo). Na verdade, os grandes processos de mudança social derivam sobretudo do descontentamento popular e da conflitualidade, sem os quais o ímpeto reformista das instituições tende a adormecer. Por isso mesmo, a mobilidade social só pode ser compreendida na sua relação com a luta de classes. É certo que a mudança estrutural – na economia, na educação, na saúde ou na recomposição sociodemográfica das populações – cria muitas vezes a ilusão nos indivíduos de que as suas trajetórias de vida evoluíram unicamente em razão do esforço ou do talento de cada um, pois, tendem a comparar-se com os seus antepassados, geralmente em pior condição. Sem dúvida que as vidas pessoais podem alterar-se substancialmente ao longo de duas ou três gerações, e aí o esforço e mérito contam. Mas a iniciativa e talento de cada um só dão lugar a efetivas oportunidades de subida quando os objetivos e investimentos individuais vão ao encontro da ordem vigente ou de uma dinâmica mais vasta que obedece, acima de tudo, ao desígnio das classes e grupos no poder, cujos privilégios procuram a todo o custo preservar. Há sempre exceções, é claro, mas os exemplos particulares não podem confundir-se com as grandes tendências históricas.

Em Portugal, a mudança social rápida por que passámos ao longo de quatro décadas obedeceu exatamente a esse tipo de lógicas. A mobilidade social foi uma realidade mas, hoje, entrámos numa "sociedade da austeridade"; que põe a nu todas as fragilidades e contradições desse processo: 1) os fluxos de mobilidade são em geral de curto alcance e os grupos que atingiram um estatuto "superior";, uma vez lá chegados, tratam de alterar as "regras do jogo"; para assegurar o seu exclusivo; 2) a melhoria de condição dos estratos mais baixos não significa uma redução das distâncias sociais em relação aos que fazem parte da elite; 3) a mobilidade social ocorre sempre em ambos os sentidos, para cima e para baixo, embora neste caso os envolvidos recusem em geral assumi-lo (como está a acontecer entre nós); 4) a recomposição do emprego e a expansão do setor dos serviços criou uma ilusão de "ascensão"; que é, no mínimo, questionável; e por fim 5), as deslocações do mundo rural para o espaço urbano induziram em alguns setores da classe trabalhadora portuguesa estilos de vida, modelos de consumo e um imaginário fantasioso de pertença a um estatuto de "classe média";. Em suma, se a mobilidade social nunca foi um fenómeno linear, no momento atual – quando a escada social está em acelerada descida para muitas famílias – o conceito carece de uma profunda revisão para nos ajudar a captar o que poderíamos considerar como "o avesso da mobilidade social";.

 


 
 
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Elísio Estanque