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13-10-2025        Expresso

Tomás Taveira: poucas figuras ilustram, de forma tão cabal, a cultura da violação em Portugal. A inscrição da violência sexual como piada no imaginário português passa, inevitavelmente, pelo arquiteto. Em outubro de 1989, a Semana Ilustrada publicava na capa “As loucuras sexuais de Tomás Taveira”, prometendo “todas as imagens chocantes” do “último escândalo”. O “escândalo” era, afinal, violência sexual com tantas dimensões, captadas nas imagens disseminadas pela publicação semanal: mulheres coagidas, violentadas, filmadas sem o seu conhecimento e consentimento. A publicação de 1989 descreve as reações de dor e agonia dessas mulheres, perante a indiferença e o prazer de Taveira, publicando as imagens que as documentam a pretexto do dever jornalístico. Fazia-o, contudo, num tom moralista, estigmatizante e culpabilizante das vítimas, apesar da denúncia dos crimes de Taveira, incluindo violação. As referências a “sodomização” e a atos sexuais “mórbidos e antinatura” são coroadas com o final da reportagem, que cito: “Propositadamente em todas as fotos sobre este triste caso tivemos a preocupação de ocultar os rostos das raparigas envolvidas. São conhecidas, caíram na esparrela do arquitecto e não sabiam que estavam a ser filmadas. / Se mostrássemos os seus rostos podíamos marcá-las para sempre. São jovens na flor da vida que foram tentadas por um homem rico e famoso. Esperemos que tenham aprendido a lição”.

Muito se especulou na altura sobre a identidade das mulheres alvo da violência, ainda hoje negada ou relativizada. Das cassetes VHS para a internet, as filmagens estão à distância de um click. Algumas das expressões de gozo sórdido, como “estudasses” e “todo lá dentro” (entre outras mais gráficas e violentas que prefiro omitir), brilhantemente expostas e desmontadas em textos recentes, de Clara Não, no Expresso, e de Mariana Moura, no Correio do Minho, passaram a integrar o léxico popular, perpassando gerações. Há, porém, muito mais sinais tentaculares da influência de Taveira na cultura da violação em Portugal: toda uma arquitetura simbólica que se manifesta na música, no merchandising, nos rituais e nas músicas de praxe, na cultura popular. Lembremos a música “Cabana do Pai Tomás”, dos Sitiados, que alude ao “andar novo”: “Na cabana do pai Tomás / toda a moça prendada / ainda que casada / rebolava naqueles sofás". 

Nos últimos anos, reuni e registei muitos dos conteúdos mediáticos publicados sobre Tomás Taveira. Afinal, Taveira sintetiza dois dos meus universos de investigação: a violência sexual baseada em imagens (VSBI) e a violência sexual ligada ao sexo anal. Ao longo dos anos, Tomás Taveira foi retratado como “enfant terrible”, convidado por Rui Unas (gerando críticas sonoras), lembrado em tom jocoso aquando da acusação de violação por Mayorga a Ronaldo (acusação de violação anal, também). Rimo-nos com ele, muito mais do que sobre ele – o verdadeiro alvo do riso coletivo sempre foram as mulheres que coagiu e abusou.

Há muito que anseio por um debate, coletivo e cuidadoso, sobre a sua herança no imaginário português, na ritualização da linguagem e do gozo sexista. Acompanhei, por isso, com expectativa e receio, o lançamento da série “O Arquiteto”, escrita por Patrícia Müller. O meu receio prendia-se com a potencial revitimização das mulheres coagidas e filmadas sem consentimento. A série suscitou um caudal de publicações sobre Taveira e a sua família, ressuscitando detalhes, vorazes e voyeuristas, sobre Taveira, a sua família e o caso tornado público em 1989. Muitos destes conteúdos reproduzem a linguagem eufemística do “escândalo sexual”. Se é certo que tais conteúdos não são imputáveis à equipa da série, considero importante questionar: falaram com as mulheres em causa? Anteciparam as consequências?

A série trouxe surpresas e tem méritos assinaláveis, nas interpretações, em diversos diálogos, nos esforços do retrato da elite da época, nas intenções declaradas de pôr “o dedo na ferida”. Não glamoriza Taveira, e cada episódio termina com a referência à APAV. Fica, contudo, refém num espaço de ambiguidade , ao afirmar que “os eventos e personagens retratados são fictícios, ainda que possam ter sido parcialmente inspirados em factos reais”, e que “qualquer semelhança com pessoas ou acontecimentos reais é meramente coincidência e não deve ser interpretada como uma representação da realidade”. Entendo a proteção legal, mas o que daqui resulta é um meio-caminho: um produto de ficção que repete as expressões mais grotescas de Taveira, mas que não assume tê-lo como referente direto. 

De 1989 até hoje, que caminho fizemos? Não estamos, já, no tempo do VHS. A cultura da violação é (também) digital. Hoje, milhares de homens partilham fotografias e vídeos íntimos de mulheres (namoradas, colegas, conhecidas e desconhecidas) em canais e grupos online, com a impunidade acrescida do anonimato. A cultura da pornografia venceu, colonizando os imaginários e guiões sexuais. Na pornografia, a associação entre sexo anal e humilhação das mulheres ritualizou-se, tornando-se entretenimento de massas. Taveira continua entre nós, no mesmo país que ainda repete “estudasses” como brincadeira, que reproduz “por que não denunciou antes?” perante qualquer denúncia “tardia”. Estamos longe de 1989: falamos mais sobre violência sexual; o #MeToo abalou estruturas e silêncios. Desocultámos alguns segredos “muito públicos”. Não deixámos, contudo, de ter Taveiras entre nós: tantos homens profissionalmente consagrados, socialmente integrados, que abusam do seu poder, estatuto e hierarquia. Arquitetos, médicos, cientistas, investigadores. Às mulheres coagidas e filmadas por Taveira, nunca fizemos justiça.

Fizemos algumas conquistas. Entre o silêncio e as denúncias em surdina, demos passos largos. Na mesma semana em que estreou “O Arquiteto”, foi aprovado no Parlamento um projeto de lei que reconhece a produção e a divulgação não consentidas de imagens íntimas passem como crime contra a liberdade sexual. Muito permanece igual desde 1989. E, no entanto, nós movemo-nos. 


 
 
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Maria João Faustino



 
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