Goa, 19 de Dezembro de 2011
Numa esplanada nas margens do Mandovi. Na minha frente, numerosos barcos semelhantes aos que nos filmes americanos vimos sulcar o Mississippi. São casinos, uma das indústrias mais florescentes de Goa. Faz hoje 50 anos que as tropas do Presidente Nehru puseram termo a mais de 450 anos de colonialismo. É um dia festivo. Há horas desfila na Avenida marginal um cortejo, carros alegóricos de diferentes bairros, organizações, clubes, religiões, celebrando a convivência pacífica. Muita dança e muita música estranhas ao olhar e ouvido ocidentais. De repente, o som desafinado de uma banda filarmónica, garbosa em seus metais lustrosos.
Cheguei anteontem, vindo de Nova Delhi, onde proferi a Ganguli Lecture deste ano, em homenagem a um grande intelectual indiano. Do frio de Delhi ao calor de Goa, das paisagens ordenadas da capital à exuberância dos mangais, palmares, cajueirais bordejados por uma estrada a fervilhar com o alarido das buzinas, aqui e acolá um pequeno comércio onde tudo é estranho exceto o nome português do proprietário, atual ou passado. Chego ao hotel de charme Pangin Inn pela mão do meu querido amigo Peter De Souza. É uma magnífica mansão colonial inteiramente mobilada em estilo indo-português. No caminho, paro, meio incrédulo, para ouvir um som familiar/estranho que vem da praça próxima. É um grupo de cinco homens e um violino, reverentemente alinhados em volta de um pequeno santuário e uma cruz de pedra. Estão a cantar as ladainhas preparatórias do Natal. É um som da minha infância e um cantar onde se acotovelam com o concani, a língua de Goa, palavras em português e latim. Sento-me para me recompor das emoções e alguém se aproxima de mim e me pergunta se quero conhecer por dentro uma casa portuguesa de Goa. É a casa do filho do estudioso goês Manuel da Costa Aleixo, autor do Dicionário de Literatura Goesa. O deslumbramento dos interiores pausados e frescos das casas coloniais de gente grada.
Vim aqui participar num colóquio internacional integrado nas celebrações da libertação, coorganizado pelo Indian Institute of Advanced Study, pelo Centro de Estudos Sociais, e pela Universidade de Goa. Foi um colóquio notável pela qualidade e número de participações vindas de todos os continentes. Em dois momentos diferentes experienciei como o colonialismo segue polémico nestas paragens. Primeiro, após a conferência de abertura para que gentilmente me convidaram os colegas indianos. Falei das características do colonialismo português, bem diferente do inglês, e fiz questão de salientar que das diferenças não seria legítimo concluir se o colonialismo português foi melhor ou pior que o inglês, já que todos são maus. No final, uma antropóloga indiana, profª na Califórnia, criticou-me por eu ter dado uma visão muito positiva do colonialismo português. Respondi-lhe que essa era uma interpretação errada do que eu tinha dito. Para minha surpresa, leio no principal diário da India, The Times of India, do dia seguinte, que eu afirmara que o colonialismo português fora pior que o inglês pelo facto de Portugal ser menos desenvolvido que a Inglaterra. Poucas horas depois recebo uma mensagem de uma jornalista da Lusa preocupada com o teor da notícia e querendo saber em que é que eu me baseava para considerar o colonialismo português pior que o inglês. Desfiz o equívoco e expliquei a minha posição. Mereceu a pena. Era uma jornalista muito competente, a julgar pela notícia que escreveu.
O segundo momento foi emocionalmente muito intenso. A Universidade de Goa, em colaboração com a associação dos lutadores pela liberdade (freedom fighters), organizou uma sessão pública comemorativa da libertação, para a qual fui também convidado. Os freedom fighters são os goeses que se opuseram ativamente ao colonialismo português e que, por isso, "conheceram" de perto a PIDE, tendo sofrido perseguições, prisões, torturas e exílio. Eram cinco anciãos (quatro homens e uma mulher). Durante duas horas deram o seu testemunho sobre as violências e atrocidades de que foram vítimas. Falavam em concani, pelo que as minhas emoções disparavam desatreladas das palavras que ouvia. Ao que me contaram, foi a primeira vez que aceitaram partilhar com um português um painel público para discutir a libertação.
Falei com o coração apressado, apesar do peso. Fui enfático em agradecer-lhes a grande lição de generosidade que me tinham proporcionado ao aceitar partilhar o painel comigo depois de tudo o que passaram, apesar de eu, obviamente, não me sentir historicamente responsável pelo colonialismo português. Ao contrário do que aconteceu em outras ocasiões, não se preocuparam em purificar o lugar onde tinham estado portugueses. Pelo contrário, senti que vivíamos um pequeno momento de reconciliação histórica. A facilitá-lo estava a escritora Maria Aurora Couto, que presidiu à sessão, a pessoa que mais me impressionou em Goa. O seu livro, Goa a Daughter's Story, em breve disponível em português, é um texto notável que nos diz mais sobre Goa que mil textos de história. Não sei se estou apaixonado por Goa se por ela.
San Cristóbal de las Casas , 1 de Janeiro de 2012
San Cristóbal de las Casas, Chiapas, México. São 9 horas da manhã. Bebo um café e como tortillas com papaia num restaurante do zócalo, a praça principal desta belíssima cidade colonial, cuja história e nome evocam a violência e os dilemas teológicos da colonização do Novo Mundo, e também a resistência persistente e heroica dos povos indígenas contra o colonialismo e o racismo ao longo de séculos. Faz hoje 18 anos que os guerrilheiros do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) ocuparam esta praça e toda a cidade e outras cidades mais do Estado de Chiapas. Na minha frente, está o edifício da Câmara Municipal, de cuja varanda leram a sua proclamação de guerra contra o tratado de livre comércio do México com os EUA e o Canadá, que entrava em vigor nesse mesmo dia. O simbolismo do ato não podia ser mais denso: no preciso momento em que o México se declarava um país desenvolvido, os zapatistas recordavam aos mexicanos e à comunidade internacional que era, em realidade, um país em desenvolvimento que se subordinava ao imperialismo americano para que ao neoliberalismo fosse mais fácil pilhar as riquezas do país. Os factos vieram a confirmar que os zapatistas tinham razão.
À minha direita está a catedral. Um barroco despojado e luminoso, tão límpido quanto os ares de Los Altos de Chiapas. Foi esta catedral que D. Samuel Ruiz, bispo de Chiapas, converteu num território de paz para que os zapatistas e os delegados do governo mexicano pudessem dialogar nos dias seguintes ao levantamento, pondo termo ao curto período de enfrentamento militar. D. Samuel, ou simplesmente "o pai" para os indígenas da América Central, foi um destacado defensor da teologia da libertação e assumiu como sua a luta dos indígenas maias empobrecidos, humilhados, ignorados, explorados, massacrados por fazendeiros sem escrúpulos e seus capangas, o que o fez provar o ranço disciplinador e reacionário do Vaticano.
Jantei a ceia de Ano Novo com a pintora Beatriz Aurora, que ilustra os livros do subcomandante Marcos, e com a filósofa da Universidade Nacional Autónoma de México Fernanda Navarro, que fugiu do Chile de Pinochet no mesmo avião que a viúva de Allende, a quem serviu de intérprete durante anos. Neste canto do mundo, ser de Portugal é ser da terra de Saramago, o escritor solidário com os zapatistas que escreveu um magnífico prólogo ao livro de contos do sub, Don Durito de la Lacandona. Ao sair de casa das minhas amigas, compreendi melhor a genialidade do levantamento zapatista naquele dia. À meia-noite a cidade é atordoada pelo fogo de artifício com que cada bairro saúda a entrada do ano. Os disparos zapatistas confundiram-se de tal modo com o foguetório festivo que os soldados só se deram conta deles alguns minutos e algumas tequilas mais tarde.
As sementes do trabalho apostólico de Dom Samuel germinam por cerros, igrejas, cafés e livrarias. Uma delas é a Universidad de la Tierra, que me convidou para participar no 2º Seminário Internacional de reflexión y análisis: Planeta tierra y movimentos anti-sistémicos. Aqui, as reflexões mais exigentes sobre a situação do mundo e a epistemologia têm lugar em salas ao lado dos pavilhões de tecelagem, carpintaria, tipografia, eletricidade, etc. onde os jovens aprendem ofícios ao mesmo tempo que, em conjunto com os professores, realizam todo o trabalho de administração e de manutenção. Os nomes de várias salas fazem-me evocar momentos mágicos da minha vida. A sala Ivan Illich. De repente, estou em 1971, na varanda do Centro Intercultural de Documentación fundado por Ivan para revolucionar a sociedade industrial e a educação formal. Na nossa frente, a serenidade imprevisível do vulcão Popocatépetl. Celebramos os 45 anos de Ivan e em breve iniciarei o seminário que dirijo, conjuntamente com André Gorz, sobre Direito e Revolução. Ivan tem uma imensa ternura por mim, entusiasma-se com a minha tese de doutoramento e publica-a. Temos diferenças, mas quer-me como a um discípulo dileto.
A Revolução do 25 de Abril e os encargos que assumi em Portugal ditaram a nossa separação. Uma angústia enorme me percorre. Podia ter sido diferente? A vozearia dos quase 500 jovens vindos de todo o mundo faz-me regressar às discussões do tempo atual, tão diferentes e, afinal, tão iguais à que tínhamos há 40 anos. O subcomandante Marcos não está presente - é ano de eleições no México e a "comandancia" está reunida em reflexão - mas estão muitos quadros e ativistas zapatistas em convívio alegre com os muitos jovens que vieram dos movimentos das indignações da ruas e praças da Europa e dos EUA. Falo durante uma hora para um auditório de muitas centenas. Começo por lhes dizer que nem tudo está perdido e que temos direito à esperança. Não lhes dou conselhos. Dou-lhes o meu testemunho, o testemunho de um otimista trágico que procura ser um rebelde competente.