A nossa relação com o mundo que nos cerca é amplamente moldada pela nossa relação com os animais, embora muita gente não se aperceba disso. Os meus cães, por exemplo, mais do que simples animais de companhia, tornaram-se um elemento decisivo (e ativo) que não só alterou o núcleo familiar como re-significou a minha relação com a natureza e a sociedade. Desde logo, porque o leque de contactos no quotidiano se multiplicou, permitindo conhecer melhor os outros humanos, quer os que acompanham os seus cães, quer os que reagem (ou não) à presença dos meus. A relação do dono com o seu pet reflete ao mesmo tempo a personalidade do animal e do tutor que o conduz, seja no sentido de uma sociabilidade friendly seja, pelo contrário, num gesto antissocial ou de agressividade. Em todo o caso, a nossa conexão com uma dada espécie pode abrir o nosso imaginário a novos reportórios de sentido sobre a vida social e o mundo em geral.
	Tal como nos humanos, há uma infinita variedade de características físicas, linguagens, e comportamentos dos animais, inclusive no seio de uma mesma espécie...
	
	A primeira abordagem que tive com um bulldog francês ocorreu há cerca de 5 anos, com uma fêmea que depois foi tomada de empréstimo, a Eva. No início, o preconceito falou mais alto – «que bicho feioso!» –, mas essa atitude evoluiu rapidamente para uma empatia e por fim, rendido, tornou-se uma verdadeira paixão (veja-se artigo «Duas ‘frenchies’», jornal Público, 27.06.2022). Não vou generalizar, mas apenas falar do meu “casal Lennon”, como gosto de lhes chamar, já que a Yoko e o John representam, no nosso universo familiar, uma espécie de réplica daquelas celebridades, dada a sua relação marcada pelo amor, paixão e algum conflito pelo meio. Porém, ao contrário dos Lennon, no caso da nossa dupla de frenchies, a Yoko foi a primeira a chegar para nos aquecer os corações, depois da citada experiência com a sua “tia” mais velha (a Eva) que, apesar de ter sido uma presença temporária, deixou um vazio que foi necessário preencher. Com efeito, após muita hesitação e demorada ponderação, incluindo consultas a diversos amigos, considerando as exigências de tempo para lhes dedicar, despesas, limitação das liberdades, cuidados com possíveis doenças, seguros de saúde, etc., etc., até que, no meio dessa indecisão, se deu um encontro casual – ou seria obra do destino?… – com uma criadora que nos prometia aceder a cachorrinhos recém-nascidos da mesma raça, e em tudo semelhantes à Eva.
	
	Chegados ao contacto com cinco filhotes lindos, destacou-se uma bebé tigrada, num corpinho agitado, pescoço esguio a erguer-se sobre um avental branco, com aquele risinho cúmplice, onde a luz irresistível do seu olhar marcante se destacava por entre as pálpebras rasgadas, a lembrar a fisionomia japonesa, trazendo de imediato à lembrança a célebre figura de Yoko Ono. Ainda antes dos três meses de vida, trouxemos essa menina até Coimbra, logo revelando o seu gosto pelos passeios de carro e toda a tranquilidade que a faz dormir um sono profundo mal iniciamos a viagem. A linguagem da Yoko faz-se pelos olhos, pela boca, pela pequena cauda em forma de virgula, e sobretudo pelas proeminentes orelhas, que são autênticos sensores teleguiados, segundo o seu critério de afinidades eletivas. Junto da mesa senta-se numa pose de perna traçada, olhos fixos em cada garfada ou pedacinho de queijo, cujo cheiro, tal como o resmalhar do pacote de biscoitos, a desperta de imediato do sono mais profundo, começando a salivar, e até a mastigar, ainda antes daquela pequena porção de comida se aproximar do seu focinho achatado.
	
	A sua grande paixão veio do Brasil. Vou tentar explicar, apesar de se saber que estórias de amor e paixão raramente têm uma explicação racional. Durante a minha estadia prolongada naquele país, as saudades da Yoko levaram-me a tentar transportá-la até ao outro lado do Atlântico, mas sem sucesso devido às restrições impostas pelas companhias aéreas a uma raça braquicefálica, como esta. Caminhando nostálgico num fim de semana rotineiro, na cidade de Franca/ São Paulo, entrei numa PetShop para comprar um brinquedo para ela, e eis que, olhando para o canto lá estava ele, o meu novo pet, no meio de dois cachorrinhos “salsichas”, todos pedindo atenção. O John (nome incontornável…), todo agitado e a empinar-se na grade daquele minúsculo parque, lançou-me aquele olhar doce, inocente e suplicante que me conquistou de imediato. Toquei-lhe na cabeça e logo começou a mordiscar-me os dedos com um irresistível sorriso na sua bocarra quase maior que a cabeça. Uma espécie de alma-gêmea da Yoko, num fato igualmente tigrado, embora mais escuro e usando apenas a gravata branca, em vez do avental.
	
	As aventuras no Brasil com o John foram muitas e variadas, desde logo, ajudaram a criar uma serie de novas relações com a vizinhança do bairro. Nos passeios diários, habituou-se a rastejar e escorregar de barriga para cima nas inclinações da relva, além das corridas alegres atrás das crianças no parque… Viajámos de São Paulo até Salvador da Bahia, dormiu em hotéis e pousadas, espalhando charme e simpatia por todo o lado, e na capital baiana multiplicou os contactos, ajudando a expandir a rede de relações pela imensa diversidade de etnias, raças, religiões e opções espiritualistas de acordo com a multiculturalidade típica desta região nordestina. E até alguma vizinhança residente no Calabar, uma das comunidades considerada das mais violentas da cidade, se revelou bem mais afável e cordial perante a presença do meu John do que parecia antes da sua chegada. Foi quase um milagre, depois da complicada epopeia burocrática da preparação, ao longo de um ano, conseguir transportar o animal até Portugal sem pôr em causa a sua saúde e segurança, a pretexto da «assistência» que ele próprio me oferecia. Nas zonas de embarque e corredores do aeroporto, quer à partida quer na chegada a Lisboa, comportou-se como um autêntico cavalheiro, educado, aguardando e observando com paciência e curiosidade toda a movimentação em redor. Com o olhar fixo e os movimentos das orelhas, ia cumprimentando e espalhando sorrisos (à sua maneira), sempre em diálogo com o dono, apesar de ser muito criterioso nas aproximações a outras pessoas.
	
	Mas o verdadeiro milagre deu-se quando o John encontrou a Yoko, que o aguardava em Coimbra. O encontro configurou uma cena rara de amor canino e voluptuoso, logo ao primeiro farejar. Com a fêmea a abanar o rabo, agitando a sua pequena virgula comunicacional, abraçaram-se, lamberam-se e ela logo se deitou, ali na relva, na frente de toda a gente… e o John, claro, respondeu à altura da situação, exercitando aqueles movimentos de anca bem ilustrativos do seu apetite imediato. Desde esse momento mágico, nunca mais se separaram até ao nascimento dos seis filhotes (três deles idênticos aos pais e os restantes brancos com manchas tigradas), os quais vêm multiplicando as alegrias de outras tantas famílias de humanos a quem foram entregues. É certo que essas famílias já tinham afinidades connosco, mas o processo de educação e acompanhamento desses novos cachorrinhos alterou o seu estilo de vida, ao mesmo tempo que ampliou significativamente as suas referências e preocupações. Reconhecer o papel dos animais na sociedade e respeitar os seus direitos é respeitar e aprofundar a defesa dos direitos humanos extensíveis à natureza e ao ambiente.