A questão "identitária" não é nova, e reveste-se de múltiplas leituras. Deixando de lado os debates clássicos sobre nacionalismo (e mesmo a visão psicanalítica da construção do “Eu”), a identidade enquanto base cultural de coesão de um dado grupo ou nação só passou a ser tema de debate no momento em que foi questionada ou ameaçada. Do ponto de vista das ciências sociais, a identidade coletiva resulta de um somatório de múltiplas identificações, nas quais se combinam pulsões de desejo e de medo: desejo por reconhecimento, visibilidade, associação e proteção no tempo e no espaço, com base na linguagem, nos valores partilhados, e nos símbolos e rituais unificadores; medo, na medida em que é o sentido do risco, a ameaça do inimigo externo, a repulsa pelo diferente, etc., que estimulam a identidade, em nome da defesa de uma dada comunhão – uma autenticidade ameaçada –, como sejam a nação, a etnia, a comunidade, a raça ou o género.
Foi sobretudo no contexto da globalização que a identidade se tornou tema de debate, e a chamada "política identitária" começou a ganhar expressão nos meios políticos e académicos. As sucessivas controvérsias em volta da identidade (étnica, racial, sexual, nacional, etc.) emergiram enquanto tema de reflexão, dir-se-ia, como contratendência, por um lado, de uma suposta “homogeneização” global em que as identidades locais e nacionais perdiam força e, por outro lado, como resposta à erosão das ideologias políticas e da eficácia das próprias instituições democráticas que, no passado, foram elementos agregadores. Na viragem do milénio, alguns movimentos sociais identitários ganharam forte visibilidade internacional, designadamente com a Primavera Árabe e o Fórum Social Mundial, chamando a atenção para temas até então secundários. Embora animados por valores solidaristas e por vezes em diálogo com o campo sindical e trabalhista, esses novos ativismos, feministas, pacifistas, antirracistas, ambientalistas, homossexuais/LGBT+, etc., influenciaram novas lutas sociais de cariz progressista, como o #MeToo, o "pós-colonialismo", o racial-feminismo e outras modalidades hoje incluídas na sigla WOKE. Este tipo de identitarismos de esquerda, apesar de algum moralismo no seu discurso “politicamente correto”, afirmaram uma posição, em geral, crítica do capitalismo, além de que, ao contrário da extrema-direita, recusavam a linguagem violenta e o discurso de ódio.
Ainda nos finais do século passado, o identitarismo de extrema-direita usou o ressentimento e o apelo à violência de setores sociais excluídos como o leitmotiv das suas ações. Experiências como as do grupo francês Bloc Identitaire e, mais tarde, o Pegida, na Alemanha de Leste (fundado em 2014 em Dresden), agitavam sentimentos de índole xenófoba, atitudes racistas e comportamentos violentos de tipo neonazi, exaltando a narrativa nacionalista e a pureza do homem branco, europeu. Tudo isto no contexto de crescimento das comunidades migrantes e dos grupos islâmicos na Europa. Os promotores das chamadas "sopas identitárias", que em França distribuíam sopa aos pobres (só aos brancos e europeus) com carne de porco para excluir judeus, islâmicos, etc., foram dos primeiros focos incendiários da direita radical europeia, que não parou de crescer até agora. O radicalismo identitário de direita ganhou expressão política na maioria dos países ocidentais, enquanto os movimentos de esquerda acima referidos perderam fôlego e apenas preservaram a sua influência em alguns setores do mundo académico.
É claro que estas tendências e movimentos estão há muito presentes na sociedade, mas no atual contexto político, os limites e, em muitos aspetos, a falência das promessas da democracia, ficaram mais expostas. Se hoje os identitarismos radicais ganham outro significado é porque se assiste a um enfraquecimento, que parece irreversível, das estruturas intermédias da sociedade, ao mesmo tempo que os velhos valores iluministas e republicanos entraram em implosão. A retórica identitarista, em especial quando permanece desligada de um projeto de sociedade agregador e credível, ameaça contribuir para descredibilizar a política e as instituições democráticas. Por outro lado, os circuitos comunicacionais, ao deslocarem-se para o terreno digital, pulverizaram o discurso dos atores políticos convencionais. Os aplicativos digitais e os modelos algorítmicos que os controlam impuseram uma nova lógica imediatista e uma aceleração descontrolada do tempo, em que cada notícia, cada contexto, se desvanece sob a voracidade do acontecimento do momento seguinte.
Ora, neste quadro, a atual instabilidade (real) da vida política e social projeta-se e amplia-se no plano das perceções, levando os indivíduos a entrar em dissonância consigo mesmos, muitas vezes substituindo as suas identidades originárias por outras inventadas e ficcionadas (nas redes sociais), e acentuando patologias, inseguranças e medos, o que favorece a adesão ao discurso de ódio e à rejeição do sistema. As narrativas identitárias radicais ganham tanto mais adesão quanto os programas dos atores políticos tradicionais se descredibilizam. Quer à esquerda, quer à direita – sobretudo nos extremos –, os movimentos identitários oscilam, mas o seu discurso indignado não casa com estratégias políticas consistentes. Os movimentos e grupos de extrema-esquerda, incluindo o chamado “wokismo” (que inicialmente prometia um acordar para novas causas identitárias, tais como o racismo, feminismo, colonialismo, sexualidades, transexualidades, LGBT+, etc.), redirecionaram os seus alvos para o ataque às instituições e ao Estado de direito, incluídos no mesmo rol da crítica ao poder dominante e aos seus principais representantes, ajudando assim a dar força à narrativa populista e ao vazio cultural que grassa nas redes digitais.
O moralismo vingativo da extrema-direita e o seu discurso pseudopatriótico (identitário) contra a esquerda e o socialismo apoiam-se na diabolização dos opositores políticos, recorrendo muitas vezes (como no caso do Chega, em Portugal) a uma linguagem agressiva e vexatória, com recurso à mentira e à manipulação da opinião pública, ao mesmo tempo que esconde a sua real intenção de tomada do poder a qualquer custo. Em suma, assiste-se a uma acentuada bipolarização da vida política enquanto as ideologias e doutrinas políticas são destronadas pelos identitarismos primários. E eles expandem-se porque os atores políticos institucionais, e em particular os partidos democráticos do arco do poder, têm sido incapazes de compreender a complexidade da vida social e as incongruências do próprio regime de que foram e são os pilares fundamentais.