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14-05-2025        Público

No momento em que Portugal volta a viver tempos inquietantes e novas ameaças à democracia, talvez mereça a pena uma breve pausa para pensarmos historicamente — e sem preconceitos — o que nos aconteceu. O que aconteceu com a minha geração, aquela que no 25 de Abril estava na casa dos vinte. Ao falar de mim, pretendo retratar um vasto segmento dessa juventude, não especialmente politizada, que foi envolvida pelo furacão revolucionário que o país viveu em 1974-75. Vou omitir aqui o termo PREC para evitar estabelecer conotações com uma linguagem já gasta pelo seu uso exaustivo e fora de contexto. O 25 de Abril é sociologicamente uma rutura de regime que só se entende à luz da história do salazarismo e do Estado Novo.

Quando o Chega e o seu líder gritam contra "50 anos de corrupção" estão objetivamente a branquear um regime em que a maior corrupção começava nas cúpulas do poder; com a diferença de que, nesse tempo, ao contrário de hoje, não era permitido criticar ou falar, e até mesmo “pensar” era arriscado. A natureza autoritária, arrogante e obscurantista desse regime está abundantemente documentada, mas hoje, mais de cinco décadas passadas, boa parte da sociedade já perdeu a memória e outra parte nunca viveu esse tempo. A isso acresce alguma inoperância do nosso sistema educativo no que toca a preservar a memória coletiva do passado junto das novas gerações nascidas em democracia (condição decisiva para a consolidação da cidadania), e ainda os resquícios de alguns núcleos saudosistas que agora se assumem cada vez mais às claras. Daí que haja hoje em Portugal uma ampla disponibilidade de setores vulneráveis à narrativa neofascista, que pretende apagar a memória desses tempos sombrios para melhor prosseguir o desígnio de reeditar um modelo semelhante, embora travestido de roupagens mais sedutoras.

Recordar o ambiente onde cresci, numa aldeia do interior alentejano de há cerca de seis décadas, visa reavivar os contornos esquecidos de uma sociedade asfixiada pela repressão e o moralismo conservador, mas por onde começavam a pressentir-se os primeiros sinais de mudança. Observar esse contexto através do olhar de uma criança que cresceu dentro de uma taberna à beira da estrada, significa lembrar a resiliência de uma comunidade local — na dureza do trabalho à jorna, no movimento grevista dos mineiros, na identidade ressentida que se exprimia no cante dos grupos corais, etc., — acossada pela apertada vigilância e repressão do Estado Novo. Por outro lado, é importante salientar que, apesar da força esmagadora de um regime que silenciava as vozes discordantes ao mínimo sinal de desalinho, não conseguiu impedir a penetração de alguns sopros de esperança e arejamento do regime, transmitidos por exemplo através dos fluxos modernizadores na economia que, nos anos sessenta, coincidiram com a chegada a Portugal das primeiras vagas de turismo internacional.

O lugar de observação onde me encontrava favoreceu o contágio com esses indícios de progresso, quando turistas e camionistas estacionavam no restaurante “O 15”, situado numa casa de adobo, que o meu pai construiu, junto à EN261, a cinco quilómetros de Aljustrel. Vivia-se um período de lenta transformação do país, se bem que na superfície tudo parecia estagnado e, em especial no interior, tratava-se de Portugal exausto e sem futuro previsível. A juventude antevia o risco da guerra colonial ou o horizonte de uma fuga para o estrangeiro ou para a capital, fossem ou não opções conciliáveis. Os anos 60 foram marcados por grandes fluxos de migrações para o litoral e eu fui apanhado nesse movimento, em busca de uma oportunidade para trabalhar e estudar à noite.

Quando cheguei a Lisboa, em finais dessa década, fui residir num bairro operário da periferia oriental da capital, e isso coincidiu com a explosão de novos estilos de vida e consciência cívica da juventude internacional, na sequência do Maio de 68, da guerra do Vietname e dos novos ritmos musicais com o rock & roll à cabeça. Como seria de esperar, os ecos desses movimentos começaram a contaminar essa geração, com especial incidência nos centros urbanos e no ambiente estudantil, como sabemos. Amplas camadas sociais da minha geração cresceram sob o signo dessa transição, que era afinal expressão das contradições de toda uma sociedade onde se misturavam conexões e ambivalências entre o rural e o urbano, cruzando fronteiras interclassistas, justapondo culturas populares aos modos de vida da pequena burguesia urbana. A construção da dissidência não é exclusiva dos núcleos mais politizados, e a mesma não teria o efeito que teve se não fosse esse background cultural forjado a partir das margens e contextos sociais subalternos. A sociedade portuguesa mudava lentamente sob os interstícios de um regime ditatorial, opressivo e em declínio. Circulando pelos bairros de Moscavide, Olivais e Campo de Ourique, a vida pessoal e profissional permitiram-me vivenciar essa mudança nos costumes e representações da juventude dos anos 60 e 70, a qual se revelou como o prelúdio da rutura política que se seguiu. A geração dos capitães de Abril foi seguramente marcada por esses anos inquietos que abririam caminho à Revolução dos Cravos.

Para além das liberdades cívicas e políticas, a maior revolução que o 25 de Abril permitiu foi a construção do Estado social, em especial na área da educação. Milhares de jovens como eu, que estavam destinados a arriscar a vida numa guerra sem nexo, puderam construir — com entusiasmo e alegria — futuros promissores, que trouxeram avanços substanciais para si mesmos e para a sociedade no seu conjunto. A seguir à ressaca revolucionária veio a universidade, com todas as oportunidades que ofereceu a essa geração e seguintes. As ciências sociais, em particular, surgiram nos anos 80 como um campo fértil de esperança para um país carente de conhecimento, desejoso de se conhecer a si mesmo para responder aos desafios do progresso, com a ajuda de novos projetos sociais, apoiados em ciência e tecnologia, mas onde as ferramentas sociológicas prometiam ser o necessário amortecedor para prevenir contra as perversões da tecnocracia e da mentalidade servil e carreirista (embora de êxito duvidoso, devemos hoje reconhecer). Apesar desse sonho desenvolvimentista ter sido parcialmente frustrado, o conhecimento do mundo e do país que essas ferramentas proporcionam permanece importante para demonstrar a falsidade e o oportunismo dos que insistem em lançar a confusão entre os portugueses desencantados, tentando fazer equivaler democracia a corrupção.

Como muitos milhares de adultos que, como eu, viveram na juventude os sonhos revolucionários de 1974-1975 sob a aura de um romantismo ingénuo, devemos lembrar aos nossos filhos e netos a riqueza indescritível que representou essa experiência, e cuja memória deve ser preservada. Sem nostalgia saudosista, mas com o distanciamento realista e a objetividade histórica que colhemos dos ensinamentos do passado. Quem experimentou a vida sob o fascismo e saboreou a utopia libertária do socialismo, sabe avaliar bem os riscos e ameaças de narrativas, hoje em crescimento, que pretendem culpar a democracia pelos persistentes problemas e injustiças do país.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
memória    democracia    ditadura