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06-05-2025        Público

Passam agora cinquenta anos desde o fim do colonialismo português. O ano de 1975 assistirá ao reconhecimento e proclamação da independência dos países africanos saídos do domínio colonial português. Não se pode entender a natureza da democracia portuguesa sem se ter em conta essa especial característica: ela é determinada pela rutura com o passado ditatorial e colonial. Sinal disso mesmo ficará expresso no artigo 7.º da Constituição: “Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.”

Aqui mesmo ao lado, a história foi diferente. No estertor do franquismo, Espanha aceitara a realização de um referendo sobre a autodeterminação do Sara Ocidental, mas a sua elite estava dividida. Marrocos e a Mauritânia reclamavam a posse do território e prepararam-se para o tomar pela força, se necessário, como acabou por acontecer. Com o apoio norte-americano e francês às pretensões de Marrocos, o plebiscito ainda não ocorreu.

Ao mesmo tempo, um novo nacionalismo sarauí expressava-se com vigor — intensificado com a criação da Frente Polisário, em maio de 1973 — o que seria atestado pela delegação das Nações Unidas que, mandatada pela Assembleia Geral da ONU, visitou o Sara Espanhol entre 12 e 19 de maio de 1975. No Relatório, publicado a 15 de outubro, a Missão constatava que existia “um consenso esmagador entre os sarauís do território a favor da independência” e que “a Frente Polisário​, embora considerada um movimento clandestino até à chegada da Missão, parecia ser a força política dominante no Território”. Foi o momento da afirmação pública da nacionalidade sarauí.

No dia seguinte, 16 de outubro, é publicado o parecer do Tribunal Internacional de Justiça, que reconhece o direito à autodeterminação do povo do território do Sara Ocidental por intermédio da livre e genuína expressão da sua vontade.

Horas depois, o rei de Marrocos, contrariando este veredicto e todas as resoluções pertinentes da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança, anuncia a invasão militar do Sara Espanhol, consumada a 31 de outubro. Milhares de sarauís foram submetidos ao exílio forçado.

Em 14 de novembro desse ano, Espanha assinava os Acordos de Madrid, nos quais repartia a colónia pelos dois países vizinhos, a troco de vantagens sobre as suas riquezas: fosfatos, banco pesqueiro e explorações mineiras.

Depois da ocupação ilegal marroquina e da saída do exército espanhol, a 27 de fevereiro de 1976, a Frente Polisário proclamou a independência da República Árabe Sarauí Democrática (RASD). Em 1979 a Mauritânia renunciou às suas pretensões territoriais, assinando um acordo de paz com a Frente Polisário, e posteriormente reconheceu a RASD.

Um mar de diferenças separa a natureza e o processo de dissolução dos colonialismos português e espanhol. Mas é possível identificar uma significativa semelhança. Tanto Timor-Leste como o Sara Ocidental foram inscritos em 1963 na Lista de Territórios Não-Autónomos da ONU, pendentes de descolonização, ao abrigo do artigo 73.° da Carta das Nações Unidas e no seguimento da aprovação pela Assembleia Geral da ONU, em 14 de dezembro de 1960, da Resolução 1514. Tanto Timor-Leste como o Sara Ocidental viram os seus processos de independência brutalmente interrompidos por meio da invasão de um vizinho poderoso, que se assumia como novo colonizador — Indonésia no primeiro caso; Marrocos no segundo — conduzindo os respetivos movimentos de libertação a décadas de luta armada e diplomática.

As “razões de Estado” prevalecentes foram a sobrevalorização dos poderes regionais considerados como aliados privilegiados do espaço geoestratégico ocidental e a desconsideração dos povos colonizados: “Quero que desapareça [o Sara Ocidental]! Não posso emocionar-me com 40.000 pessoas que provavelmente não sabem que vivem no Sara Espanhol”, disse Henry Kissinger ao presidente argelino num encontro a 9 de outubro de 1975.

A causa de Timor acabou por beneficiar de ampla mobilização internacional, na qual Portugal teve um papel decisivo. No caso do Sara Ocidental, a RASD foi reconhecida por mais de 80 países e tornou-se membro de pleno direito da OUA e depois membro fundador da União Africana. O Tribunal de Justiça da União Europeia, em outubro de 2024, reafirmou que o Sara Ocidental e Marrocos são dois territórios “distintos e separados”, declarou ilegais os Acordos comerciais firmados entre a União Europeia e Marrocos, e confirmou, no seguimento das Nações Unidas, que a Frente Polisário representa o povo sarauí, concedendo-lhe capacidade jurídica para contestar em tribunais europeus ações que ponham em causa o respetivo direito à autodeterminação.

Em Portugal, a tarefa descolonizadora marcou a história da nossa singular abertura democrática. Tal como a Constituição de 1976 propõe, essa tarefa declina-se num gesto de solidariedade com todos os povos que lutam pela sua liberdade e independência. É por isso que as autoridades portuguesas devem assumir claramente o seu apoio a um referendo sobre a autodeterminação do Sara Ocidental. Chegou também a altura de a Assembleia Geral da ONU solicitar uma nova visita do Comité de Descolonização ao território. Cinquenta anos depois, o povo sarauí continua a interpelar-nos.


 
 
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Miguel Cardina