Certamente todos nos lembramos da primeira vez em que Francisco apareceu à varanda da Basílica de S. Pedro, quando foi escolhido para Papa. Em lugar de começar a abençoar a multidão, disse, com toda a simplicidade: “Boa noite.” E depois, inclinou-se para que a multidão o abençoasse. Bastou esse sinal. Pode parecer insignificante, mas, para quem conhece a mise en scène destes momentos, não o foi de todo.
O nome escolhido também foi logo indício de que tinha chegado ao Vaticano um Papa sem pretensão de poder, de controlo, mas com vontade de, por gestos e palavras, introduzir no coração da Igreja algo que não resultava apenas da sua personalidade, como alguns dos seus detratores soft afirmavam, para diminuir o peso dos seus atos e das suas palavras.
Não foi um Papa “populista”, “folclórico”, “jipe todo-o-terreno”, como disseram alguns saudosos de Bento XVI, que consideravam ser um “Mercedes”, com todo o veneno “de veludo” que a comparação ocultava. Também não foi um Papa ignorante (como se um jesuíta pudesse ser ignorante!) pelo facto de vir da América Latina, como se só a Europa fosse capaz de “produzir” bons papas.
Foi um Papa que conscientemente colocou no centro da Igreja aqueles a quem o mundo vira a cara, todos aqueles que, na sua denúncia lúcida de todas as formas de injustiça, o mundo considera “descartáveis”. Dizia que o seu sonho era uma Igreja pobre, para os pobres e que a opção pelos pobres é a matriz da própria Igreja. Por isso, um dos seus primeiros gestos foi ir a Lampedusa, esse cemitério dos migrantes desesperados.
Concebia a Igreja como “um hospital de campanha”, com a porta aberta ao mundo, a todos, particularmente, aos que sofrem, aos excluídos pela própria Igreja. Sim, já sabemos que a sua linguagem “formal” nem sempre acompanhava a sua atitude pastoral, mas dava a sensação de que, o seu coração estava cheio de misericórdia e não de “doutrinação”. Interpelado em relação a algumas das questões fraturantes, respondeu várias vezes: “Quem sou eu para julgar?” Claro que essa atitude de humildade, de misericórdia, abre a porta à necessidade de discernir, coisa que deixou alguns “inseguros”, provavelmente, aqueles que prefeririam que a Igreja se orientasse por uma espécie de código da estrada: não seria preciso pensar. Bastaria repetir e cumprir regras.
Neste sentido, apesar de discursivamente não ter conseguido desvincular-se de uma linguagem essencialista para falar das mulheres, Francisco deu passos de gigante ao chamar mulheres para ocuparem lugares-chave no governo da Igreja. Oxalá quem venha a seguir compreenda que esse caminho tem de ser irreversível para que a Igreja não desdiga a mensagem de Jesus, que confiou a mensagem da sua ressurreição precisamente a mulheres…
Francisco deu passos de gigante ao chamar mulheres para ocuparem lugares-chaves no governo da Igreja. Oxalá quem venha a seguir compreenda que esse caminho tem de ser irreversível para que a Igreja não desdiga a mensagem de Jesus
Tomando o nome de Francisco, a preocupação do Papa não foi só tentar “reparar a Igreja”, como S. Francisco de Assis, embora tenha enfrentado com uma coragem enorme e de coração aberto os escândalos dos abusos sexuais. Percebeu que esconder é que era corrosivo para a Igreja. Percebeu que era preciso pedir perdão às vítimas. Pena que, pelo mundo fora, pareça que nem todas as Igrejas locais compreenderam isso…
Francisco desencadeou um movimento de cuidado pelo planeta, de compreensão da ecologia como um conceito integral, que inclui não só a sustentabilidade da natureza, mas também a sua articulação com a qualidade de vida da humanidade, em particular, dos mais afetados pelas alterações climáticas (vejam-se os seus documentos Laudato sì e Fratelli Tutti).
O que fazer com a sua herança? O processo sinodal que Francisco desencadeou, no qual se experimentou uma consulta e uma escuta das vozes dos cristãos (mulheres, homens, bispos, padres…) como nunca na história da Igreja, e no qual o Papa assumiu o documento de síntese como seu, não pode parar, sob pena de, ao matar esse impulso, matar-se a esperança de milhões de crentes e de poder acontecer haver muitos a quem Francisco abriu a porta que batam com a porta e desistam da Igreja.
Muito mais haveria a dizer sobre o Papa Francisco. O melhor é acabar com palavras suas (Esperança – a sua autobiografia): “Quando há o ‘nós’ começa a esperança? Não, ela começou já com o ‘tu’. Quando há o ‘nós’ começa uma revolução.”