A discussão em torno da apetência de uma significativa parte de governantes e deputados para a criação e participação em empresas do negócio imobiliário e os argumentos que vão sendo expandidos em torno desta controvérsia exigem reflexão.
O primeiro-ministro (PM) meteu-se num atoleiro. Não é vítima de um “caso mediático”, ou de qualquer complô. Não está em causa ter tido uma empresa e, muito menos, o direito a não ter de abandonar “tudo o que foi a minha vida profissional”. Montenegro optou por não esclarecer, nos tempos e espaços devidos, o que devia ter esclarecido e, entretanto, evidenciaram-se expedientes que imporão novos desenvolvimentos políticos, jurídicos e éticos. O desgaste do Governo parece imparável. Também porque vários dos seus elementos estão em situações potencialmente idênticas à do PM. Veremos, este sábado, a decisão que toma e que passos se perspetivam da parte do presidente da República, hoje atascado em incoerências.
A questão a abordar neste texto não é o aprofundamento desta análise, mas, sim, observar as muitas inverdades ditas por diversos políticos e analistas a propósito deste imbróglio. Montenegro está a ser vítima de “existir na sociedade portuguesa errada suspeita sobre a atividade empresarial” e apoucamento “da liberdade de iniciativa”? “Temos pouco empreendedorismo”? Os trabalhadores portugueses “acomodam-se a um salário certo no fim do mês”?
Em Portugal existem muitas centenas de milhares de atividades empresariais. Proporcionalmente, são bem mais que em muitos países do nosso espaço económico. Um enorme número são pequenos e até médios empresários que começaram por ser operários e quadros. Determinação não lhes faltou. Faltaram, sim, políticas de incentivo para que apostassem mais em setores produtivos, faltou, muitas vezes, apoio financeiro, e falta-lhes a formação que os qualifique para uma boa gestão.
Os governantes e deputados que nas suas atividades profissionais escolheram ser empreendedores no imobiliário têm o direito de o fazer, mas há incompatibilidades a serem respeitadas e não podem sentir-se ofendidos se lhes dissermos que estão em atividades rentistas. O país está prisioneiro da conjugação do inchaço imobiliário e turístico com a economia paralela, com o excesso de trabalhadores a recibo verde e empresários em nome individual, e com uma estrutura empresarial fragmentada e mal preparada.
Quem pode dizer que os trabalhadores portugueses se acomodam? A esmagadora maioria faz milagres de gestão para que os seus baixíssimos salários lhes permitam não passar fome e ter um mínimo de dignidade, São pobres por gosto? E os muitos que emigram fazem-no por se acomodarem?
Empresas temos muitas e iniciativa também. O nosso problema é o esvaziamento da democracia e o abcesso turístico/imobiliário, que distorce o perfil de especialização da economia e aprisiona o desenvolvimento do país.