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30-10-2024        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

No próximo dia 1 de Novembro vamos reunir-nos em Londres, no King´s College, para celebrar o poeta universal Luís de Camões e o professor, escritor, poeta e ensaísta Helder Macedo. É para mim um voltar a casa de múltiplas maneiras: o lugar, a minha alma mater estrangeira, passe o paradoxo; a pessoa, Helder Macedo (HM), o meu professor; e Camões, o nosso inesgotável assunto de sempre. Porque falar com HM é falar com Camões, Bernardim Ribeiro, Almeida Garret, Cesário Verde, com as palavras de hoje. E com tantos outros poetas, escritores, músicos, pintores para com as palavras deles encontrarmos as palavras de hoje.

Foi esse o projeto, o de procurar “Camões, o nosso contemporâneo” (para citar de outra forma o livro de HM recentemente reeditado Camões e outros Contemporâneos), que nos reuniu recentemente para a organização do número 28 da CAMÕES - Revista de Letras e Culturas Lusófonas, sobre Luís Camões no cinquentenário do nascimento do poeta. Perfeito o convite do Camões, Instituto da Cooperação e da Língua, ao dar a curadoria da sua revista ao crítico que mais audaz e sedutoramente revolucionou a crítica universitária camoniana. Generosidade imensa do Helder em me chamar para o projeto.

Entre muitos desafios que Camões sempre lança ao crítico, ensaísta e escritor HM um se tornou obsessivo, porque pessoal: de que forma Camões articula contrários para continuar? Ou seja, não para ficar no presente tenso em que vive, mas para se projetar no futuro. “Cada um com o seu contrário num sujeito” é o verso de Camões que dá título ao ensaio de HM em que esta temática é desenvolvida de forma multifacetada, mas é a via do  amor que escolhe para análise, ou seja, otópico humaníssimo que é o amor camoniano, fruto mais da experiência que da contemplação, visto como a forma de dar entendimento às coisas que o não têm.

O amor é em Camões o modo superior de conhecimento do mundo. E basta conhecer a singular obra ensaística de HM para ver que esta permissa-verso foi sempre a janela de interrogação que colocou sobre os seus estudos da literatura e da cultura, realizados a partir do texto – que pode ser um texto literário, uma obra visual, um trecho musical – e não a partir das camadas críticas que os anos e os críticos ou os políticos tinham colocado em cima desse texto. Em diálogo com os seus amigos pintores esta ideia de articulação de contrários ganhou dimensão visual. Foi também isso que Helder Macedo viu nas suas telas, que hoje são parte de si. Portanto quando fala criticamente deles e delas, escritores e artistas, fala a partir de si.

Partes de África, o seu romance de 1991, é uma estreia nos terrenos da ficção e é uma camoniana narrativa de articulação de contrários para poder continuar não no presente, mas no futuro, libertado do passado colonial e familiar que também o fizeram, como aliás a todo o seu país, Portugal. Em termos pessoais o romance pode ser lido como uma longa carta póstuma ao pai-pátria, relembrando aquela famosa carta ao pai de Franz Kafka, em que sobre o mapa o corpo do pai ocupava todo o espaço. Em termos do nosso país, Partes de África é o início de uma discussão sobre o passado colonial e salazarista, que ocupava todo o espaço respirável, e os seus reflexos no presente português, ou talvez melhor, sobre um passado “enterrado vivo”, que sobrevive fantasmaticamente no presente pós-colonial português. É possível enterrar os fantasmasnão os transformando em fantasias, para continuar? É.

Partes de África não é um enterro, nem um romance “neo-lusotropical”, mas uma prova de vida, camonianamente subscrita, sobre, não exatamente a reconciliação com o passado, mas sobre a restituição para o futuro, num tempo que cronologicamente não é seguramente o do pai evocado no romance, nem será provavelmente o do filho, o narrador, mas é algo que o autor deixa como horizonte de futuro às gerações seguintes. Algo que se deixa como “herança viva”, à espera de ser reclamada.

NUMA LEITURA ALARGADA, a camoniana expressão – “Cada um com o seu contrário num sujeito” – é também um verso que veicula um entendimento geopolítico do mundo. Foi este eixo que guiou o nosso trabalho de curadoria da revista atrás referida, com a cumplicidade dos autores e dos artistas que nos deram a honra de escrever e desenhar. Camões foi o primeiro poeta europeu a poeticamente cantar os espaços, as pessoas, os hábitos e as vidas do Oriente

POR ISSO, CINCO SÉCULOS DEPOIS a revista Camões que comemora o poeta Luís de Camões e a sua obra magna, organizada por HM, tinha de começar ao contrário, ou seja do extremo Oriente, que é o Japão, para o extremo ocidental da Europa, que é Portugal.

Este é o tempo da viagem da camélia (ou japoneira) para Portugal, concebida pelo artista japonês Jan Shirasu, na série do painel de azulejos “A Viagem da Camélia”, viagem que toca, em sentido inverso, os pontos geográficos da viagem de Vasco da Gama narrada por Camões, em Os Lusíadas.

NO TEMPO CONTEMPORÂNEO DA NOSSA HISTÓRIA, outra é a viagem. Camões surge-nos no projeto visual “Camões com um K”, do escritor e artista angolano José Luandino Vieira, cujo traço nos traz Camões para uma contemporaneidade pós-imperial. Será este o fim desta história do começo dos impérios de Camões? Não, apenas o começo de outra narrativa, pelos outros atores. Uma narrativa que contém um passado, que não ignora a violência e a dúvida inscrita na epopeia crítica que são Os Lusíadas, na leitura de HM; e que contém um presente tenso povoado de fantasmas insepultos que camonianamente sentimos em Partes de África, mas que ambiciona um outro tempo futuro: o tempo em que “em mansa paz estará cada um com seu contrário num sujeito.”

Na verdade, trata-se do tempo da história de vários sujeitos etno-culturais, com identidades próprias, da Índia a Portugal, passando por Moçambique, África do Sul, Cabo Verde, Angola ou Brasil que hoje recombinam criativamente, nas mais variadas linguagens, as linhas de Camões para falar da sua contemporaneidade. Só quem conversa quotidianamente com Camões poderia imaginar hoje assim a viagem celebratória da obra maior do poeta. O entendimento do gesto crítico de HM em relação à obra de Camões é, e continuará a ser, um projeto inacabado, sempre renovado pela sua palavra viva, pela sua curiosidade, pela sua interrogação que nos abre os caminhos do futuro.

Quando hoje HM vem ao Centro de Estudos Sociais, a Coimbra, generosamente encantar os meus alunos ao falar de Camões e outros contemporâneos, digo-lhes sempre e sem mais apresentações: Bem-vindos a Helder Macedo, ofereço-vos um bilhete para o mundo.

Nota: As expressões entre aspas são respetivamente de Luís de Camões, Miguel Cardina, Eduardo Lourenço e Miguel Vale de Almeida.


 
 
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Margarida Calafate Ribeiro



 
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