O saudoso economista Mário Murteira disse, em junho de 2002, numa conferência proferida no INDEG/ISCTE, a propósito do conceito globalização: “trata-se de uma falsa ideia clara”, ou seja, a palavra tinha (continua a ter) uma utilização universalizada, mas não unanimidade no entendimento do seu significado.
Na minha tese de doutoramento, trabalhada entre 2002 e 2007, identifico cerca de trinta nuances diferenciadas na interpretação desse “termo quase mágico”. Serge Cordellier chamava-lhe “palavra fetiche”, e o grande economista e humanista (Prémio Nobel) Amartya Sen considerava a onda de globalização desse período caraterizada por ser um mundo em que “o sol nunca se põe no império da Coca-Cola”. No presente há quem considere estarmos no oposto da globalização, mas outros afirmam que agora é que entramos no tempo de efetivo global.
O culto de palavras que são falsas ideias claras ampliou-se e vem carregado de concentrados ideológicos de alto teor. Dois exemplos, “talento” e “mérito”. Governantes de várias sensibilidades desta democracia liberal em que vivemos, empresários e analistas repetem aqueles termos até à exaustão. E muitos académicos entram nesta pretensa modernidade. Stephen Hawking afirmou “O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, é a ilusão do conhecimento”.
Na língua portuguesa, a palavra talento significa “nível superior de certas capacidades particularmente estimadas” e “disposições intelectuais naturais ou adquiridas”. Os seres humanos com obra reconhecida, nas diversas áreas, são os primeiros a afirmar que o talento dá aturado trabalho e exige deitar mão do máximo conhecimento possível que pertence a toda a sociedade. A palavra talento, na boca de um fala-barato, é o oposto dessas exigências.
Uma das grandes conquistas da nossa democracia nas últimas décadas foi a extraordinária melhoria da formação escolar, designadamente de nível superior, dos nossos jovens. Criamos-lhes bases para se poderem qualificar profissionalmente e terem mais e melhor vida para além do trabalho. Para tal é preciso políticas e práticas empresariais e públicas que gerem emprego de qualidade, profissões e carreiras valorizadas, salários bem mais elevados, condições de acesso à habitação, melhor Estado social, valorização da cultura e da participação cívica e política. Só respondendo a estes desafios teremos trabalhadores talentosos e cidadãos excelentes. Chamar aos jovens “talentos” para os iludir e arrastar a resolução dos seus problemas é criminoso.
No conceito “mérito”, tanto cabe valorizar empenho, talento verdadeiro, criatividade, humildade, como o seu oposto, ou seja, falta de solidariedade, esperteza saloia, sobranceria, capacidade de gerar lucro para acionistas mesmo destruindo emprego e empresas. Cabe tudo o que em determinada circunstância der jeito a quem tem o poder de subjugar os outros. Não deixemos que estes vácuos perdurem.