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18-09-2024        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

No texto anterior iniciei uma reflexão sobre o conceito de precisão ou de rigor e o modo como foi evoluindo do mundo antigo até aos nossos dias. Mostrei que a lógica do rigor foi sempre a lógica do corte, e que evoluiu no sentido de identificar rigor com quantificação. Adverti que as enormes vantagens que daí decorreram não podem ser separadas dos custos que significaram em termos de eliminação de tudo o que em certo momento foi considerado pouco ou nada rigoroso. Usei duas das metáforas da definição de rigor – ancoras praecidere/ cortar as amarras, linguam praecidere/ cortar a língua. Hoje debruço-me brevemente sobre duas outras metáforas: manus pracidere/ cortar as mãos e naturalia praecidere/ cortar os genitais.
 

MANUS PRAECIDERE/ CORTAR AS MÃOS

A amputação das mãos como punição é um fenómeno antigo e está presente em diferentes culturas. Mas, sobretudo a partir século XIX, a literatura ocidental converteu a condenação da amputação das mãos num dos marcadores por excelência da superioridade do Ocidente (civilizado) sobre o Oriente (bárbaro). Aviva Briefel mostra como a imaginação vitoriana do Reino Unido usa a amputação das mãos como máxima ilustração da crueldade do Oriente, sobretudo da Índia (romances de Rudyard Kipling, Arthur Conan Doyle, etc), ocultando que essa prática existira no passado no Reino Unido e em outros países europeus.

Mas o caso mais sinistro deste tipo de violência cometido às ordens de um Estado Europeu foi certamente o que ocorreu no Congo durante a vigência do “Estado Livre do Congo”, propriedade do Rei Leopoldo II da Bélgica. A revelação deste massivo manicídio chocou a Europa, mas nem por isso abalou a ideologia da superioridade da civilização europeia. Como metáfora, a amputação das mãos assinala o poder das mãos em provar factos e dar testemunho da ordem (a imposição sacramental das mãos, o juramento sobre a bíblia, a impressão digital como prova de identidade e de exercício do direito de votar) e da subordinação da desordem à ordem (palmatória como punição escolar, a amputação da mão).

A exigência do conformismo e a força do poder donde dimana manifestam-se com uma intensidade esdrúxula na medida em que a mão amputada é mais visível e tem mais capacidade probatória que a mão não amputada. Além disso, simboliza a visibilidade continuada da punição, ao contrário do que acontece com a pena de morte ou com a pena de prisão. Em ambos os casos, “o corpo do delito” é invisibilizado porque morre ou porque desaparece por detrás das grades. Ao contrário, a mão amputada está fiagrante e continuadamente visível.

Quem controla o critério da precisão do mundo está bem consciente do poder das mãos para o sublinhar ou para o subverter. O poder subversivo das mãos para desafiar a ordem e pôr em causa o conformismo está bem patente no modo como as algemas foram usadas ao longo dos séculos como instrumento favorito para provocar a imobilidade de alguém culpado ou suspeito de comportamento desviante.

Não surpreende que a frase idiomática “atar as mãos” ou “cortar as mãos” signifique impedir alguém de exercer a sua liberdade, potencialidade ou criatividade. Claro que libertar as mãos não tem necessariamente um significado ético ou político positivo. Basta recordar o debate filosófico desencadeado pela peça de teatro de Jean-Paul Sartre, Les Mains Sales, escrita em 1948. É uma peça em que Sartre justapõe duas posições contraditórias sobre a atividade política, protagonizadas por Hoederer e Hugo, ambos membros do partido revolucionário proletário. Em dado momento, Hoederer, dirigindo-se a Hugo diz: “Como te agarras à tua pureza, meu jovem! Como tens medo de sujar as tuas mãos! Está bem, mantém-te puro! Que bem é que isso vai fazer? Porque se juntou a nós? A pureza é uma ideia para um yogi ou um monge. Vocês, intelectuais e anarquistas burgueses, usam-na como pretexto para não fazer nada. Para não fazer nada, para ficarem imóveis, com os braços ao lado do corpo, usando luvas de pelica. Bem, eu tenho as mãos sujas. Até aos cotovelos. Mergulhei-as na imundície”. O problema das mãos sujas acabou por alimentar um debate filosófico-político particularmente vivo nos EUA.

Enquanto metáfora da ação transformadora, as mãos anticapitalistas, anticolonialistas e anti patriarcais estão hoje mais cortadas que em meados do século passado e o mais dramático é que a amputação não foi apenas infligida pelas forças políticas inimigas dessa transformação, foi também autoinfligida. Daí o sufocante conformismo em que vivemos, numa sociedade cada vez mais injusta e cada vez mais indiferente à injustiça.
 

NATURALIA PRAECIDERE/ CORTAR OS GENI TAIS

Finalmente, a outra dimensão da praecisio mundi diz respeito à amputação dos órgãos genitais. Literalmente, a expressão refere uma longa tradição em diferentes culturas de diferentes tipos de castração ou mutilação. Muito genericamente os dois tipos mais referidos  na literatura são o eunuco e a circuncisão (corte, mutilação) genital feminina e a circuncisão masculina. Mas qualquer destes tipos oculta uma grande diversidade de intervenções e uma variedade ainda maior no modo como foram tratados ao longo da história.

Não me refiro neste texto aos casos em que a amputação, castração ou transformação são um ato de afirmação pessoal de natureza religiosa ou outra. Leyla Jagiella cita a propósito o Evangelho segundo São Mateus: “De facto, existem eunucos que nasceram assim do ventre materno; outros foram feitos eunucos por mão humana; outros ainda, tornaram-se eunucos por causa do Reino dos Céus. Quem puder entender, entenda” (19:12). Refiro-me, pois, aos casos em que a amputação, entendida em sentido amplo, foi um marcador privilegiado da precisão da sexualidade autorizada ou proibida, tal como a estudou ao longo da história Michel Foucault, ainda que restringindo-se à história ocidental: La Volonté de savoir (1976), L’Usage des plaisirs (1984), Le Souci de soi (1984), Les Aveux de la chair (2018, póstuma).  A amputação literal ou metafórica dos órgãos genitais, sobretudo femininos, teve sempre um valor de prova especial do comportamento e, portanto, de garantia da obediência aos critérios de rigor da precisão do mundo.

Por isso, os desvios foram sempre severamente punidos. O conservadorismo político ou religioso viu sempre na sexualidade um campo de risco e de intervenção privilegiado. Os puritanos, ao mesmo tempo que celebravam o amor conjugal, consideravam que o corpo da mulher, “por ser mais fraco”, era o veículo preferido por Satanás para dominar a sociedade, já que era através do corpo que ele acedia à alma.

As metamorfoses recentes da misoginia merecem particular atenção porque, mais uma vez, podemos estar perante formas de praecidere auto-infliigidas. Por um lado, a luta a todos títulos louvável, contra a amputação genital feminina tem levado, por vezes, à imposição de discursos feministas ocidentais que contribuem para incapacitar ou desautorizar as mulheres não ocidentais que nas suas comunidades e a partir da sua cultura lutam contra essas práticas.

Por outro lado, a partir da década de 1980 emergiram dentro de certas correntes do feminismo novas formas de neoconservadorismo que redundaram em novas formas metafóricas de genitália praecidere. A convergência entre algumas correntes do feminismo e conservadorismo anti-feminista tem vindo a ser notado em vários países em tempos recentes, por exemplo na Finlândia e na Itália. Estamos a entrar numa era de amputações autoinfligidas?
 

O ELOGIO DA PRAECULTIO MUNDI O CUIDADO DO MUNDO

 

O cuidado do mundo não é o contrário da precisão do mundo. São complementares, e o erro da ciência moderna (e da ética que se foi deixando subordinar à ciência) não foi apenas o de conceber conceito de precisão do mundo como sua propriedade exclusiva. Foi também o de separar a precisão do mundo do cuidado do mundo, de tal modo que este foi relegado para o campo mítico-religioso e para o campo poético-estético, qualquer deles desqualificado à priori por lhe faltar rigor. No domínio das ciências e das relações sociais esta separação significou submissão ao cálculo utilitarista, à monocultura epistémica, ao dogmatismo da vontade de quem impõe o critério da precisão. Daí resultou o empobrecimento da humanidade e o seu desarme ético, expressos no cinismo, no niilismo, na indiferença perante a desigualdade e a injustiça. Os desastres humanos e naturais causados pelo conhecimento preciso passaram a ser considerados danos colaterais do progresso.

Além disso, a análise histórica da sociologia do conhecimento revela-nos que os critérios de precisão, além de servirem os interesses das classes e dos grupos que em cada momento controlaram os critérios da precisão para impor a sua vontade (por último, a precisão dos algoritmos da inteligência artificial), coexistiram sempre com posições dissonantes no próprio campo científico que, com dificuldade, se foram afirmando (da teoria da relatividade à física quântica), para não falar das posições que, fora do campo científico, se recusaram a separar radicalmente a precisão do mundo do cuidado do mundo, a ciência da ética, a objetividade da subjetividade, a razão da harmonia entre razão e emoção, o indivíduo da sociedade, o progresso da ameaça que cada progresso sempre significa, a ordem da confusão criativa, a monocultura do rigor da pluricultura das probabilidades razoáveis.

Vista do futuro, a precisão do mundo foi sempre a imprecisão autorizada para servir interesses precisos. Ao contrário, o cuidado do mundo assentou sempre na presença e na copresença, na proximidade em vez da distância, no compromisso concreto em vez dos valores e princípios abstratos, na regulação do conflito em vez da anulação do conflito, na ajuda nos termos de quem precisa e não nos termos de quem ajuda, no inter-ser em vez do ser egocêntrico.


 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos



 
temas
história    investigação    ciência