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21-08-2024        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

A expressão latina, praecisio mundi, em português, precisão do mundo, tem uma longa história na filosofia ocidental e adquiriu uma renovada notoriedade a partir de Descartes, intensificada no século XIX com o positivismo. Defendo neste texto que está a adquirir uma nova e problemática importância. Etimologicamente, praecisio deriva do verbo latino praecidere que significa cortar, mutilar, mas, com o tempo, o termo adquiriu um significado positivo: expressar-se brevemente, ser claro, ser preciso, deixar de fora o supérfluo. Na modernidade ocidental o conceito foi significando a eliminação de tudo o que é considerado obscuro ou confuso, da metafisica teológica ao pensamento mítico-poético e à comunicação popular vernácula.

A precisão, como expressão do que é rigoroso, foi sendo identificada com tudo o que é previsível, mensurável e quantificável. Para a ciência moderna, a precisão é a razão de ser do trabalho científico e, com o positivismo, o conceito de precisão atingiu a sua máxima legitimidade. Segundo Augusto Comte, no seu Manifesto Positivista, lançado em 1822, era considerado preciso e, por isso, positivo o que era real e não imaginário; útil e não ocioso; certo e não duvidoso; não vago, indeterminado ou inexato. O salto epistémico ocorre no momento em que a precisão é identificada com a verdade. O que é impreciso não pode ser verdadeiro. A hegemonia da ciência moderna como o único conhecimento válido fez com que tudo o que não era verdadeiro (preciso) para a ciência fosse considerado descartável, se não mesmo perigoso. O problema não está no rigor (que é desejável e necessário), mas no que se entende por rigor e nos critérios que o fundamentam1.

Desde os primórdios (talvez com Tales de Mileto no séc. VI AC), o conceito de precisão foi alvo de controvérsia. Dos sofistas aos românticos, dos debates sobre as ciências quantitativas (explicação) e as ciências qualitativas (compreensão), da física quântica à astronomia, as limitações impostas ao conceito de precisão, a suspeita de subjetividade que lhe pode subjazer sub-repticiamente e, sobretudo, a importância do que pode ser amputado pela tesoura da precisão têm sido contestadas. Essa contestação vai atingir um nível de discussão existencial nos próximos tempos à medida que a inteligência artificial e o seu instrumento privilegiado, os algoritmos, se converter na condição de precisão eficaz do nosso tempo. O debate já começou e certamente vai atingir o máximo questionamento em domínios como o das intervenções médicas complexas e das armas letais em teatros de guerra.

Uma reflexão mais profunda mostra que a precisão tem hoje uma vigência que vai muito para além destes domínios. Ela é hoje um dos pilares do espírito do tempo. Fiel à perspectiva epistémica que venho adoptando, as epistemologias do sul, estou interessado em identificar a sociologia das ausências (sob a forma de amputações) de que se alimenta o conceito de precisão. Sem nenhuma preocupação de exaustão, abordo brevemente duas amputações ou mutilações. Outras se seguirão. Recorro às designações latinas para mostrar donde emanam.

ANCORAS PRAECIDERE/CORTAR AS AMARRAS

O tema de cortar as amarras é um leitmotiv de toda modernidade eurocêntrica e assumiu o carácter de um quase imperativo categórico com Nietzsche. Cortar as amarras é soltar o barco do ser humano moderno para ele poder navegar, arriscar, aventurar-se, inovar. Literalmente, cortar as amarras é o que se diz que navegadores portugueses, espanhóis e depois outros europeus fizeram quando zarparam em busca do chamado Novo Mundo.

Na Ciência Gaia, Nietzsche advoga partir e cortar as pontes com tudo o que se deixou, nomeadamente toda a carga ontológica, metafísica e teológica com que a cultural ocidental se constituiu. E o corte fundamental é com Deus: Deus está morto e foram os humanos que

o mataram. O vazio niilista será preenchido pelo super-homem de Zaratustra. A provocação de Nietzsche desfez-se no ar, mas outros avatares de Deus parecem estar no horizonte. A inteligência artificial e os algoritmos destinam-se a ser o super-homem dos nossos dias. Se alguém perguntar ao ChatGTP o que é Deus, será levado a concluir que a crença em Deus foi substituída pela crença no algoritmo. Cortar as amarras significa amputar a riqueza epistémica, social e cultural do mundo a um nível inimaginável, não só do mundo não ocidental que foi colonizado a partir do século XV, como de tudo o que foi cortado/amputado/mutilado da cultura e da filosofia ocidentais por não ser útil à causa da colonização. Perde-se a memória e a história dos que não podem esquecer. Confere-se uma autoridade incondicional aos que não querem lembrar. E se a precisão vier a ser cada vez mais condicionada pela chamada inteligência artificial, o extrativismo neocolonial em que assenta (a construção dos big data e os vieses que habitam toda a construção algorítmica protegida por patentes, é possível que a praecisio mundi termine tragicamente na praecisio mortis mundi (precisão do fim do mundo).

LINGUAM PRAECIDERE/CORTAR A LÍNGUA

Não me refiro aqui ao uso literal do corte da língua como forma de punição para certo tipo de crimes no mundo antigo. Metaforicamente, cortar a língua tem tido múltiplos significados como, por exemplo, proibir o uso de certas palavras ou linguagens (blasfémia), ou exigir a precisão dos termos como expressão da precisão do pensamento (filosofia, ciência) ou da autoridade de quem se pronuncia (oráculos, fatwas, encíclicas, códigos). A busca da precisão ou da correção da linguagem implica sempre a amputação ou mutilação do que é excluído e o exercício do controle sobre o que é incluído. Dependendo do tipo de poder em que se funda esse controle, a amputação ora foi odiosa, ora foi virtuosa. A Inquisição (a queima de livros e, muitas vezes, dos seus autores) e todos os regimes políticos ditatoriais que impuseram a censura e proibiram a dissidência significaram, e continuam a significar, as formas mais odiosas da amputação da língua em nome da ortodoxia e do dogmatismo.

Com o advento da ciência moderna, a amputação da linguagem – que tivera em Galileu o grande pioneiro ao proclamar a superioridade da linguagem matemática e geométrica – tornou-se o único caminho para atingir a virtuosa precisão da linguagem, identificada como a única expressão da verdade. O positivismo levou ao paroxismo esta legitimidade. Os custos da mutilação da linguagem em nome da precisão foram sempre denunciados, quer porque os critérios da precisão eram disfarces para a imprecisão (Schopenhauer), quer porque as dimensões mítico-poéticas, estéticas e religiosas eram relegadas para o mundo descartável da confusão e da obscuridade como, antes de Janke, outros filósofos e poetas tinham assinalado.

Mas escaparam a estas denúncias muitas outras formas de mutilação que levaram ao empobrecimento da compreensão do mundo. Antes de mais, a oralidade passou a ser um veículo linguístico inerentemente impreciso e, por isso, descartável. Nos povos colonizados pelos europeus dominava, e continuou a dominar por muito tempo, a cultura oral, que, precisamente por ser oral, foi alvo do que designo pelo epistemicídio, a destruição dos conhecimentos veiculados oralmente de geração em geração. A precisão do conhecimento científico não tinha que conduzir necessariamente a essa destruição. Bastava para isso que a ciência fosse considerada um conhecimento válido, mas não o único conhecimento válido.

Nessa base, seria possível valorizar criticamente diferentes conhecimentos (suas possibilidades e limites), reconhecer os diferentes conceitos de rigor, procurar diálogos entre eles de modo a aumentar o interconhecimento intercultural do mundo – aquilo a que tenho chamado ecologia de saberes. Mas não foi isso que aconteceu. Pelo contrário, com o positivismo a monocultura da ciência foi plenamente consagrada e a precisão científica passou a ser o único critério de verdade. Contudo, uma vez que todos os sistemas de conhecimento são incompletos e não podem responder a todas as perguntas, a ciência, arvorada em único conhecimento válido, tornou-se tanto um sistema de conhecimento, como um sistema de ignorância. Como a ciência só pode responder a perguntas formuladas cientificamente, a ignorância reside nas perguntas não formuláveis cientificamente. Porque estamos no mundo? Qual o sentido da vida? Os nossos antepassados vivem connosco? Porque é que, sendo finitos, os seres humanos são os únicos que pensam o infinito? Serão? Qual a diferença entre ouvir e escutar profundamente? Entre ver e ver o invisível? Porque é que um bom poema nos toca mais profundamente que qualquer artigo científico? O que é a espiritualidade? A verdade da experiência mística reduz-se ao estado psicológico que ela manifesta?

 A mutilação da linguagem em nome da ciência trouxe consigo algumas perversidades que merecem atenção. Enumero duas. Em primeiro lugar, o rigor científico criou uma cultura de patrulhamento linguístico que se vira contra a própria ciência (e a sua verdade) quando esta o não subscreve. São disso exemplo a proliferação das fakenews, do politicamente correcto e da cultura do cancelamento. Em segundo lugar, o patrulhamento da correcção científica por via de revisores anónimos (de desconhecido conhecimento e ignorância) e assente em critérios quantitativos de rankings e impactos está a destruir a curiosidade e a criatividade científicas. A ciência revolucionária, nos termos de Tomas Kuhn, tornou-se inviável. Por estas razões, as perguntas cientificamente formuláveis continuam a ser importantes, mas interessam a cada vez menos pessoas, são cada vez mais triviais, orientadas por interesses que escapam aos próprios cientistas e nada têm a ver com a melhoria da vida humana e não humana, que foi o objectivo original da ciência.


 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos



 
temas
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