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11-09-2024        Público

Cinco reclusos, considerados muito perigosos, evadiram-se do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus numa ação planeada e aparentemente simples de executar. Para lá do mediatismo deste caso, importa considerar este contexto para refletir sobre o sistema prisional enquanto realidade sistematicamente subestimada no âmbito das políticas de justiça e desvalorizada pelas perceções sociais, e aí encontrar um conjunto alargado de motivos que possam justificar o que se passou.

Há muito que o sistema prisional é caracterizado em diversos diagnósticos. Desde o trabalho da Comissão de Estudos e Debate da Reforma do Sistema Prisional presidida por Diogo Freitas do Amaral, em 2004, ao relatório Para uma reforma do sistema prisional. O caso da aplicação do Estatuto do Corpo da Guarda Prisional, de 2021, do Observatório Permanente da Justiça (OPJ), passando pelos sucessivos relatórios do provedor de Justiça resultantes das visitas a EP, todos evidenciam ampla e recorrentemente a ausência de uma estratégia global adequada à realidade, bem como as muitas fragilidades materiais e de recursos humanos dos estabelecimentos prisionais.

Privilegiando uma perspetiva de políticas integradas, há três grandes dimensões conetadas a considerar nestes diagnósticos. A primeira é consequência de uma elevada taxa de reclusão, que condiciona medidas robustas diferenciadas atendendo à heterogeneidade de perfis da população prisional. Portugal apresenta, no quadro europeu, uma significativa taxa de reclusão e de duração das penas de prisão, facto que resulta de múltiplos fatores, destacando-se a fragilidade crescente da organização e funcionamento eficaz das respostas alternativas à prisão em meio livre. Há uma população reclusa, em número significativo, pela prática de pequena e média criminalidade, como seja a reincidência na condução sob o efeito do álcool que deveria ter outro tipo de respostas, e que estudos vários apontam como mais eficazes no plano da reincidência. Por outro lado, também por vários fatores, em Portugal, os reclusos mantêm-se em prisão efetiva quando a lei, se correta e atempadamente aplicada, lhes permitiria sair do sistema prisional mais cedo.

Para lá do muro do sistema prisional
A segunda dimensão resulta da gestão do parque prisional e dos recursos materiais a ele afetos. Apesar das várias reformas dirigidas ao sistema prisional, com a pretensão de otimizar a organização e funcionamento dos EP, a realidade continua a evidenciar fragilidades no campo das infraestruturas, dos recursos humanos, materiais e financeiros, que colocam em causa a execução eficaz das várias funções atribuídas às prisões. As evidências desta fragilidade estrutural traduzem-se na manutenção de espaços prisionais em condições degradadas e degradantes, sobrelotados, onde é difícil a distribuição diferenciada dos reclusos pelos diferentes estabelecimentos prisionais e, internamente, dentro de cada um deles. Sintoma deste diagnóstico difícil são as recorrentes condenações do Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pelo tratamento desumano e degradante, associado às condições de reclusão.

A terceira dimensão consiste na exaustão dos recursos humanos afetos ao sistema prisional. O corpo de guardas prisionais, os técnicos de reeducação e de reinserção e os técnicos de saúde são cada vez em menor número para as exigências que o sistema assumiu na dignificação e reinserção dos reclusos. Os desafios colocados pelas condições de trabalho em contexto prisional, nomeadamente as condições físicas dos EP, a sobrelotação, o trabalho por turnos, a possibilidade de hostilidade e violência por parte dos reclusos, a perceção de falta de reconhecimento profissional, a progressão na carreira e a remuneração são aspetos que contribuem para que os diferentes profissionais que laboram nos estabelecimentos prisionais sintam a sua profissão como exigente e stressante.

Apesar da enorme linha abissal que separa a realidade prisional da vida social em liberdade, o Estado sempre desenhou políticas para o sistema de reclusão. A reinserção dos reclusos emerge, desde o primeiro Governo Constitucional, como uma das dimensões mais relevantes da execução da pena de prisão, em torno da qual os posteriores governos se propuseram desenvolver e aplicar um conjunto alargado de medidas.

Para a concretização dessa orientação estratégica destacam-se, nos programas de governo, as seguintes áreas de ação: formação e ocupação dos reclusos, saúde em meio prisional, intervenção do poder judicial na execução das penas em defesa dos direitos dos reclusos e criação de condições para a libertação dos reclusos. Todas estas intenções e preocupação com a ressocialização, manifestada nos programas de governo, nos diplomas legais, e nas medidas que foram sendo adotadas nas diversas áreas de ação, não são coincidentes com a realidade, revelando a dificuldade de concretização da agenda programática.

O mediatismo da fuga dos cinco reclusos desperta o alarme social para a perigosidade dos mesmos. Mas o alarme mais gravoso vem de dentro do próprio sistema, para as insuficiências de vigilância, de habitabilidade, de saúde, reeducação e ressocialização, para a escassez de recursos materiais e humanos.

Numa altura em que se discute o encerramento de estabelecimentos prisionais centenários, como o de Lisboa ou Coimbra, ou a racionalização dos 49 EP existentes em Portugal, é importante refletir sobre as prisões do futuro (o que está a ser efetuado no ciclo de seminários organizado pelo OPJ), tal como acontece noutros países europeus, com sistemas de vigilância sofisticados para reclusos de elevada perigosidade, para estratégias diferenciadas de reinserção para os outros reclusos, mas essencialmente para as condições de dignidade e efetivo respeito pelos direitos fundamentais para os cidadãos que estão à guarda do Estado português.


 
 
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Carlos Nolasco



 
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