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09-09-2024        Público

Vasco da Gama e Fernão de Magalhães: estes são nomes de que qualquer português já ouviu falar. Mas quem já ouviu o nome de Armando Rodrigues de Sá?! Por seu turno, muitos alemães nunca ouviram falar de descobridores portugueses, mas já depararam com o rosto de Armando de Sá. Pois a fotografia a preto e branco do português a chegar timidamente à estação de caminhos-de-ferro em Colónia-Deuz a 10 de setembro de 1964 – faz amanhã 60 anos –, e a ser recebido efusivamente por empresários, políticos e jornalistas alemães, é hoje um lugar de memória na Alemanha. Ela simboliza um turning point na história do país, nomeadamente a chegada dos Gastarbeiter, dos primeiros imigrantes, e assim, a passagem de uma sociedade “etnicamente homogénea” para uma sociedade diversa.

Dos seus 81 milhões de habitantes, 24 milhões têm hoje um passado migratório, ou seja, eles ou os seus pais emigraram para a Alemanha pós-guerra. Contrastando com os EUA, o Canadá ou o Reino Unido, a maior parte deles não são de países extracontinentais e antigas colónias, mas sim europeus do Sul. Só os recentes refugiados da Ucrânia vieram suplantá-los.

Mas quem foi Armando de Sá e porque se tornou ele o rosto da imigração na Alemanha? Nascido em Nelas, Viseu, em 1926, no seio de uma família de lavradores, o carpinteiro Armando de Sá partiu para a Alemanha em 1964. Nesse ano, Portugal e a RFA assinavam um contrato de recrutamento laboral que celebra este ano 60 anos e que serviu de enquadramento legal para a imigração da maioria dos 170.000 portugueses até 1973, altura em que o Governo alemão cessou o recrutamento. O acaso quis que a associação de empresários alemães elegesse Sá como o milionésimo imigrante e festejasse este recorde numa cerimónia a 10 de Setembro de 1964 com música e uma motorizada Zündapp Sport Combinette de presente e um aparato de jornalistas à chegada. A eles se deve a famosa fotografia, inúmeras vezes reproduzida em jornais, posters, catálogos e livros de História.

Na altura, a Alemanha Ocidental assistia a um ressurgimento espetacular da sua economia – o conhecido “milagre económico”. Se até então tinha saciado a sua fome de mão-de-obra, sacrificada na guerra, com a emigração proveniente da Alemanha Oriental, a construção do Muro de Berlim pôs um travão a essa fonte laboral. Passou, pois, a recorrer a outros países, essencialmente do Sul europeu, onde predominavam a agricultura e a falta de emprego. Após a derrota das suas aspirações imperiais nazis, principalmente no Leste europeu, a Alemanha selava assim tratados com países como Portugal, onde se assistia aos últimos anos do império e à Guerra Colonial. O primeiro acordo foi assinado com a Itália em 1955, seguido dos tratados com a Espanha e Grécia em 1960, a Turquia em 1961, Marrocos em 1963 e um ano depois com Portugal.

O dia-a-dia de Rodrigues de Sá como imigrante nada tinha das aspirações imperiais do seu país de origem nem da receção festiva que lhe foi feita à chegada. Tal como os outros imigrantes, trabalhava no setor baixo, na construção, fazia horas extraordinárias e levava uma vida frugal para conseguir enviar cerca de 500 marcos mensais para a família em Portugal, que visitava regularmente. Por seu turno, a sua família nunca o pôde visitar nem Sá conseguiu realizar o sonho de levar a esposa e os dois filhos consigo. Aos 44 anos, foi-lhe diagnosticada uma doença maligna, pelo que não regressaria à Alemanha. Uma parte das poupanças e da reforma, pedida antecipadamente porque desconhecia o seu direito a subsídio de doença, foram gastas no seu tratamento. Morreu de cancro de estômago em 1978, com apenas 53 anos de idade.

Sá, tal como os milhões de emigrantes portugueses espalhados pelo mundo, foi, de certa forma, um descobridor. Apesar do seu grau de formação e recursos parcos, teve a coragem de partir para um país desconhecido para ajudar a sua família. Não rumou para a África ou América, mas para um país pós-fascista do Norte, enfrentando um clima social e laboral difícil. Não obstante milhões de portugueses partilharem o seu destino, incluindo portugueses formados, não obstante vivenciarem mesmo exclusão e racismo, pouco se sabe sobre as suas vidas.

As suas poupanças constituem um pilar fundamental da economia portuguesa – no entanto, a migração como sina nacional não se inscreveu na narrativa do país. Não há um monumento, um centro de estudos ou museu dedicado ao tema que se tenha registado na memória coletiva nacional. O que é que isto revela sobre a sociedade portuguesa, ainda atraída pela narrativa das descobertas como elemento de identificação?! Que somos o país da não-inscrição, como afirmou José Gil?! Que os meios de comunicação pouco se interessam pelo tema? Que a política reprime o tema migração, tradicional válvula de escape para os problemas do país, por ser fruto das suas decisões políticas?! Que somos uma sociedade classista e até existe uma “vergonha coletiva”, no sentido que lhe foi dado por Didier Eribon, da origem de muitos portugueses, preferindo nós adular o que é estrangeiro?!

Seja qual for a razão, não admira que a Zündapp que era orgulho de Sá e que ele levou para Portugal logo que pôde esteja novamente na Alemanha, mais precisamente no museu Haus der Geschichte, em Bonn. A fotografia dele a ser brindado com a mota à sua chegada inscreveu-se de tal forma na memória coletiva alemã que um estudo foi encomendado para se descobrir o seu paradeiro – foi adquirida por 10.000 marcos e integra agora a sua exposição permanente. Apesar de a migração continuar a ser um tema negativo na Alemanha e ser até usada como bode expiatório, há uma crescente consciencialização sobre o tema: museus e universidades começam a aperceber-se da necessidade de valorizar as experiências migratórias.

Se a inscrição da migração nas narrativas nacionais é débil, tal é ainda mais marcante a nível europeu. Emigrantes como Sá foram, de certa forma, europeus avantgarde. Eles possibilitaram os primeiros encontros europeus após um período de exacerbação nacionalista e fascista que desembocaram na Segunda Guerra Mundial. Graças a eles, as sociedades aonde chegaram são hoje mais abertas, diversas e culturalmente mais ricas. A ausência de uma memória transnacional e europeia em torno desta fotografia contraria não só a retórica da Europa como casa comum e da mobilidade como um dos seus pilares fundamentais, mas facilita também que o tema seja sequestrado por discursos xenófobos, principalmente da extrema-direita. Sá era português, porém a memória coletiva da sua vida não é portuguesa nem europeia, mas alemã. Mais de meio século após a sua partida, Sá continua a ser o português dos alemães.


 
 
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Clara Ervedosa



 
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