1. Se dúvidas houvesse sobre o estatuto do Presidente da República na II República, o exercício do cargo por Marcelo Rebelo de Sousa acabou de as dissipar. Desde a revisão constitucional de 1982, que redefiniu as prerrogativas do Presidente, emergiu uma melopeia que domina a opinião pública – mas que reputo de essencialmente falsa. Vigora a ideia de que o Presidente da República dispõe de um campo de intervenção “institucional” num sentido oposto a “político”. Daí ter havido neste milénio – sobretudo à esquerda – uma desvalorização da importância política do Presidente e da sua eleição.
É num campo balizado por essa disjunção que o Presidente deve escolher quem convida para chefiar o Governo, ou deliberar sobre o “regular funcionamento das instituições”. No entanto, em nenhum momento a Constituição define “intervenção institucional”, ou proíbe o Presidente da República de fazer uma leitura pessoal da situação política ou das medidas que ela impõe, ou sequer sugere como pode alguém obstar ou opor-se a uma decisão presidencial (a não ser por via de um hipotético crime). Os actos do Presidente não são sindicáveis e apenas são puníveis politicamente em eleições... Como tal, mesmo que houvesse base sólida para estabelecer a distinção entre fundamento “institucional” e “político”, a prática tornou-as irrelevante. O Presidente da República decide em consciência qual o entendimento que tem, e nenhum órgão de Estado o pode julgar ou contrariar. A sua decisão será aplicada.
Vejamos dois exemplos. Ao dar posse a António Costa (2022), o Presidente afirmou que a sobrevivência do Governo dependeria da permanência do primeiro-ministro no cargo. Quando este apresentou a sua demissão, o chefe de Estado dissolveu o Parlamento. Foi isto uma atitude fundamentada em questões “institucionais”? O funcionamento do conjunto das instituições não era regular? O Parlamento propunha uma outra solução, aliás baseada num precedente histórico... Obviamente, tratou-se de uma opção “política” – e não foi, nem podia ser, travada administrativa ou judicialmente.
Nas suas memórias, Cavaco Silva revelou que cerca de um terço dos diplomas promulgados na condição de Presidente da República havia sido ajustado no seu conteúdo entre si e os governos que os haviam proposto. Sob o manto diáfano de uma “cooperação institucional”, Cavaco Silva reivindicava para si uma palavra sobre o conteúdo político da legislação.
O Presidente tem, assim, um papel bem mais importante no sistema político do que as habituais metáforas do “árbitro” deixam transparecer. É um actor político de grande relevo, não sendo, de todo, uma espécie de “notário” ocupado apenas com formalismos “institucionais”.
2. O sistema eleitoral para a Presidência estriba-se numa eleição em dois turnos. Este sistema favorece um voto de “convicção” no primeiro turno (que propicia um leque amplo de candidaturas) e um voto “estratégico” no segundo (quando a opção é entre dois candidatos). A experiência de dez actos eleitorais (oito desde a revisão de 1982) permite algumas ilações:
Todos os presidentes incumbentes se apresentaram a reeleição, e todos venceram;
Quando há um incumbente, este tende a apresentar uma plataforma mais “centrista” do que na sua primeira eleição;
Quando não há um incumbente, a eleição presidencial polariza-se entre esquerda e direita.
A esquerda venceu duas eleições sem incumbente (1986, 1996), sendo a primeira a única até hoje a necessitar de segundo turno. Na eleição de 1996, Jorge Sampaio foi o representante único deste campo no dia do sufrágio. Já a direita venceu as eleições de 2006 e 2016 tendo apresentado – como nas duas que perdeu – candidaturas de consenso. Ou seja: com uma única excepção, as eleições presidenciais sem incumbente favoreceram o campo que apresentou desde o primeiro turno uma candidatura abrangente.
A facilidade com que a direita se uniu desde 1986 (Freitas do Amaral, Cavaco Silva – em 1996 e 2006 – e Marcelo) está hoje em causa devido à emergência da extrema-direita com voz e corpo institucional próprios, e ao inevitável dilema que isso coloca. Uma candidatura que cubra o arco do PSD ao Chega (Passos Coelho?) põe em cheque o “não é não” de Montenegro, sem o qual o espaço moderado se perde; uma candidatura da direita democrática arrisca-se a não ganhar à primeira, e ficar de fora de um segundo turno em que pudesse alargar o seu eleitorado sem grandes custos.
A esquerda tem aqui uma oportunidade: inverter a tendência para dispersão na primeira volta (hoje não há questões de fundo como o carácter civilista do regime e a opção europeia que justificaram a opção de 1986), e existe uma memória muito positiva de uma convergência política recente – a “geringonça” – que levou mais longe o que outras candidaturas (como a de Jorge Sampaio em 1996) preconizaram. Sobretudo quando a direita pretende voltar ao sonho de Sá Carneiro – uma maioria, um governo, um Presidente – significativamente distinto do ethos do nosso semipresidencialismo, o desfio é aliciante.
3. Outra característica relevante do sistema político português é a formação de partidos políticos em torno de líderes que aspiram a ser primeiros-ministros, remetendo a Presidência da República para figuras que, sem deixarem de representar uma “família política”, são figuras de relevo para além do espectro partidário. Apenas um Presidente foi eleito quando era líder partidário – Mário Soares em 1986 – e antes de tomar posse suspendeu a sua militância (vindo a ser notória a sua distância em relação a sucessivos líderes do “seu” PS). Existe uma norma não escrita que sugere que o perfil de um candidato presidencial deve demonstrar (relativa) independência em relação ao universo partidário, o que ajuda a compreender os resultados honrosos de candidatos “independentes”.
Cumpre realçar um contraste claro entre PSD e PS desde 2006. Enquanto o PSD, com mais ou menos entusiasmo, se empenhou nas campanhas de Cavaco e Marcelo, o PS perdeu todas as eleições ou por uma escolha infeliz (em 2006), ou mesmo por “falta de comparência” (2016, 2021).
O PSD acaba de dar o tiro de partida para as presidenciais de 2026 (sem incumbente), na linha de uma compreensão fina do papel do Presidente da República no nosso sistema político. Veremos como reage o lado direito do espectro partidário.
À esquerda, espera-se que a oportunidade de disputar uma eleição peculiar e decisiva corresponda a uma vontade de aprender com o passado. O PS já veio a terreiro dizer que aprendeu a lição. Terá a capacidade de o demonstrar?
Haverá outras eleições antes das próximas presidenciais. Mas é claro que a importância destas já começou a fazer-se sentir, e mesmo sem “nomes”, as presidenciais vão depender do modo como esta rentrée política começar a desenhar os seus contornos. O debate sobre o Orçamento do Estado é um importante indicador do posicionamento estratégico para o ciclo político que se abre.