Quando se discute impostos surge uma sucessão de opacidades resultantes de desajustamentos temporais nos dados disponíveis, da complexidade de regimes ou disposições de exceção e, ainda, dos labirintos das leis. Tudo isto facilita leituras enviesadas e exercícios de adivinhação. A fraca análise substantiva das políticas fiscais e a inexistência de informação descodificada criam cenários conducentes a manipulações.
O primeiro-ministro (PM), tendo por objetivo defender-se da acusação de que o custo previsto de 1500 milhões de euros, para efetivar as suas propostas de política fiscal, irá beneficiar sobretudo as grandes empresas, e da fezada de que a descida gradual da taxa de IRC aumentará o investimento, teve afirmações e omissões que exigem atenção.
Uma das afirmações foi que “97% das empresas que pagam IRC são PME”. É verdade, os dados da Autoridade Tributária (AT) relativos ao ano de 2022 confirmam-no. Mas isso não significa que 97% das PME paguem IRC, como o PM insinuou e alguns jornalistas e comentadores mal preparados tentaram passar à opinião pública. Montenegro devia ter informado que, do total das empresas com faturação declarada (mesmo nula), grande parte não paga IRC. Em 2022, segundo a AT, mais de metade (52%) não pagou. Do total de 562 049 empresas no registo da AT naquele ano, apenas 249 973 pagaram IRC. E podia ter acrescentado que, nesse ano, cerca de 36% das grandes empresas (422 em 1176 empresas) também não pagaram. Todavia, dado o volume de lucros obtidos, as grandes empresas são as que, proporcionalmente, mais contribuem para a receita global de IRC cobrado - em 2022, cerca de 37%.
Tendo presente estes e outros dados disponibilizados pela AT, facilmente se conclui que a descida do IRC de 21% para 15% (projetada até ao fim da legislatura) entregará às grandes empresas a parte de leão do seu efeito. Se o regime proposto tivesse sido aplicado em 2022, cerca de 0,3% do total das empresas (as grandes) que pagam impostos teria arrecadado um terço do valor total da redução.
Observemos, a partir dos dados da AT relativos a 2022, de onde vem a receita de IRC por setor de atividade. Cerca de 40% da receita total de IRC foi paga por três setores: o financeiro (27%); o imobiliário (7%); e o da construção (5%). Os três têm personificado uma estratégia de utilização do imobiliário como ativos financeiros. A estes somam-se a atividade comercial grossista e retalhista, com 18%.
Dar mais lucros às atividades financeira e imobiliária e à grande distribuição vai beneficiar a industrialização ou a atividade das PME? Vão os acionistas destes setores gerar um mecenato para implementação de atividades produtivas e de maior valor acrescentado?
O neoliberalismo vem desarticulando os contratos laborais, acantonando as pessoas no individualismo e impingindo a ideia de que deve ser o mercado a definir a repartição do rendimento, subjugando regras coletivas e uma ordem social equilibrada. Daí decorre uma certa aceitação de que o Estado é prejudicial ao desempenho económico e social, logo, entregar benefícios fiscais e outros ao poder económico e financeiro pode parecer lógico.
Há que travar um forte combate ideológico contra estes exercícios de bruxaria.