A história do futebol está repleta de episódios em que o terreno de jogo se tornou campo de manifestações políticas. Umas vezes são os jogadores que tomam posições políticas, outras são os espetadores que se manifestam politicamente. Perante estas situações, as entidades que regem o futebol sempre assumiram atitudes de negação, afirmando que o futebol nada tem a ver com política, censurando tais ocorrências. Mas a FIFA e a UEFA sabem que essa não é a realidade e, quando atribuem a organização da fase final de uma competição a um país, estão a sancionar contextos políticos, ou quando recebem governantes nos camarotes presidenciais estão a veicular uma mensagem política. O futebol também é política
Compreende-se a posição das instâncias federativas que têm que gerir um negócio futebolístico e, por isso, afirmam a sua neutralidade visando cativar uma vasta e heterogénea massa de adeptos. Contudo, essa negação revela-se incongruente perante a intensa expressão social de que jogadores e equipas são investidos enquanto representantes de identidades locais, regionais e nacionais. Em consequência, a negação da expressão política do futebol não é inocente, servindo claros interesses estratégicos das instâncias que regulam a modalidade.
Ainda que negando a sua espessura política, as entidades desportivas, são politizadas. A UEFA, por exemplo, em termos estatutários, expressa uma manifesta posição política ao assumir os valores de respeito, equidade, abertura, unidade, excelência, integridade e justiça. Na sua visão estratégica para o período 2024-2030, a UEFA assume o compromisso do futebol ter um efeito positivo de mudança social e que os grandes eventos futebolísticos estejam alinhados com este objetivo. Também na Declaração dos Direitos Humanos para o Euro 2024, subscrita pela UEFA e pela Federação Alemã de Futebol, afirmam-se os princípios da diversidade e inclusão, da não discriminação, do bem-estar e da liberdade de expressão. No atual contexto europeu, de exacerbada intolerância, xenofobia, radicalismo e nacionalismo, de crescente expressão política da extrema-direita, defender valores como os que são assumidos pela UEFA constitui um manifesto político e a assunção de uma posição do lado da moderação.
Talvez que as decisões da UEFA em relação a duas situações verificadas no Euro 2024 sejam sintomáticas dessa posição. Num primeiro momento, os jogadores franceses Kylian Mbappé e Marcus Thuram, a propósito da eminente vitória da extrema-direita nas eleições para a Assembleia Nacional, manifestaram-se contra os riscos dos extremismos e apelaram ao voto moderado. Noutra situação, o futebolista da Turquia Merih Demiral comemorou com os braços levantados e a ilustrar com as mãos um lobo, alegadamente em referência ao grupo turco da extrema-direita. Perante duas situações ideológicas diametralmente oposta, a UEFA reagiu. Não se pronunciou sobre as posições políticas dos jogadores franceses, e esse silêncio é já por si uma tomada de posição. Relativamente ao jogador turco, o mesmo foi castigado com dois jogos de suspensão, com o argumento de violar as regras básicas de uma conduta decente e por usar um evento desportivo para manifestações de natureza não desportiva.
Nesta dualidade de posições, ainda que se possam invocar as diferentes circunstâncias em que ambas situações aconteceram, a UEFA está indiscutivelmente a assumir o compromisso político assente em valores partilhados no espaço europeu, nomeadamente a expressão da dignidade humana, a não discriminação, a tolerância, os direitos fundamentais, a liberdade, os quais são negados pela extrema-direita.
Importa, contudo, não ser ingénuo e especular sobre qual a amplitude dessa expressão política, se de conservadorismo ou de progressismo? Desde logo, a ação disciplinar da UEFA, nos casos referidos, é coerente com os valores que advoga. Mas essa posição pelos direitos e pela moderação acontece por parte de uma entidade que, por delegação da FIFA, gere de forma monopolista o futebol na Europa, defendendo-o de forma intransigente. Há cerca de dois anos, aquando da realização da fase final do Campeonato do Mundo no Qatar, essa intransigência revelou-se na forma como os direitos e a moderação política por parte das entidades que superintendem o futebol foram relativizados perante a necessária diplomacia para com os poderes que financiam a competição.
Também a UEFA, perante brutais ataques a populações civis, se por um lado suspendeu a participação do futebol russo nas competições europeias, por outro mantém a participação do futebol israelita nessas mesmas competições. Mais do que coerência e moderação, do que opção por valores democráticos e direitos humanos, a estratégia política da UEFA, na gestão dos seus interesses, é a de jogar o jogo da realpolitik.