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09-02-2024        Público

“Feministas, o vosso silêncio é cúmplice” é uma acusação que tem sido repetida com alguma frequência desde o 7 de outubro, ainda que com sentidos e destinatárias muito diferentes. Foi dirigida às feministas ocidentais acusadas de indiferença perante as várias formas de violência e morte impostas às mulheres palestinianas em Gaza. Por exemplo, Maryam Aldossari argumenta que as feministas ocidentais são cúmplices dos crimes de Israel por apoiarem o esforço de guerra israelita e estigmatizam, através de chavões como “antissemitas” e “apologistas da violação”, as – feministas solidárias com o povo palestiniano.

Do mesmo modo, a acusação “Feministas, o vosso silêncio é cúmplice” ouve-se também frequentemente da parte de feministas israelitas e ocidentais tanto judias como não judias para criticarem o que consideram ser a falta de solidariedade de organizações e iniciativas feministas internacionais para com as israelitas violadas, assassinadas e raptadas no pogrom de 7 de outubro. Vejam-se, a título de exemplo, os hashtags #MeToo unless you are a Jew, #BelieveIsraeliWomen ou um post viral da atriz Gal Gadot. Argumentam que, apesar de as provas da violência sexual serem inequívocas desde o início – lembremos os vídeos partilhados do corpo de Shani Louk exibido como troféu ou da refém Naama Levy, arrastada pelos cabelos com as calças e os tornozelos ensanguentados – e, apesar de a violência sexual ter um lugar tão importante no pensamento e nos ativismos feministas, as respostas feministas internacionais foram inexistentes, evasivas ou problemáticas.

Acusam algumas reações de terem sido tardias (por exemplo, apenas em dezembro é que a ONU Mulheres se pronunciou sobre as violações); apontam para exemplos de negação das violações por parte de ativistas na área da violência sexual (por exemplo, a diretora do centro de apoio a vítimas de violência sexual na Universidade de Alberta, Canadá); e acusam aqueles/as que se referiram ao 7 de outubro como ato de resistência contra a ocupação de darem legitimidade à violência sexual.

Estes desencontros e estas tensões entre feministas de diversos quadrantes a propósito do que deve ser uma resposta feminista ao 7 de outubro e à destruição de Gaza colocam-nos perante várias questões. Desde logo, se num contexto como o de Israel-Palestina marcado pela generalização de atos de violência extrema (bombardeamentos massivos, destruição sistemática de infraestruturas, atentados terroristas, assassínio de crianças, fome imposta) é legítimo destacar a violência sexual. O que distingue do ponto de vista ético os atos de violência extrema e tortura sexual no 7 de outubro das violências infligidas à população de Gaza, onde as mulheres – mulheres cujos nomes desconhecemos e que marcam presença nos nossos noticiários apenas como estatística – são enterradas vivas nos bombardeamentos, e correm risco de morrer à fome e por falta de cuidados médicos?

Sabendo que, perante um ataque sem precedentes contra Israel, precisamente numa altura em que o país é dirigido pela extrema-direita, e prevendo-se que a resposta israelita seria de uma brutalidade imprevisível, as formulações vagas de muitos/as ativistas de condenação da morte de “todos os civis” foram uma estratégia inclusiva ou apenas silenciaram a especificidade da dimensão sexual do 7 de outubro? Como formular solidariedades feministas inclusivas que abarquem as vítimas do 7 de outubro e as de Gaza?

Como sabemos, a solidariedade é uma postura que exige mais do que palavras e implica ações relativamente às vítimas e aos contextos em que a violência ocorre. O que nos leva às seguintes questões: o que implica condenar a violência do 7 de outubro e a destruição de Gaza? O que implica ser solidária com as vítimas da guerra e da ocupação? Para que serve a solidariedade? Pode a crueldade do 7 de outubro justificar a destruição sistemática de Gaza, o ignorar do direito internacional, um tal desprezo pela vida do Outro em que até reféns em fuga são assassinados pelas forças israelitas porque os confundiram com palestinianos? Pode a brutalidade do 7 de outubro permitir ao governo israelita apostar na vingança, apesar de isso significar a morte dos/as reféns ainda em cativeiro? Pode o envolvimento de alguns empregados da UNRWA no 7 de outubro justificar que os EUA e outros países ocidentais imponham um castigo coletivo ao povo palestiniano através da suspensão do financiamento desta agência da ONU precisamente quando se assiste à maior emergência humanitária em Gaza, assim condenando à fome os 2 milhões palestinianos/as do território?

As tensões e clivagens que se vivem em círculos feministas em torno do 7 de outubro e de Gaza devem-se precisamente às disputas sobre as implicações da solidariedade e ao reconhecimento de que a solidariedade pode facilmente resvalar para a justificação de um crime através de um outro. E, no entanto, é precisamente na capacidade de articulação de solidariedades inclusivas e atentas às especificidades das várias experiências da guerra e da ocupação que os feminismos poderão oferecer contributos válidos. Podem, por exemplo, ajudar a identificar as razões e implicações das violências genderizadas e sexuais num quadro de violência mais abrangente, sem que tais análises pactuem com a legitimação da violência. É que, se é verdade que é cúmplice quem escamoteia a violência sexual no 7 de outubro como resistência à violência histórica contra o povo palestiniano, não menos cúmplice é quem invoca o 7 de outubro para pactuar com a destruição de Gaza e da sua população. Uma solidariedade feminista consequente não é possível se servir para alimentar a escalada da violência, com lógicas de "matar para não ser morto"; apenas será possível se se empenhar no cessar-fogo imediato, na libertação imediata de todos/as os/as reféns e na defesa de soluções políticas justas para a guerra e a ocupação.


 
 
pessoas
Júlia Garraio



 
temas
guerra    direitos humanos    feministas    israel    palestina