O biênio 1987/88 foi o preâmbulo para grandes transformações. Enquanto a URSS de Gorbatchov implementava a Perestroika - o que levaria ao colapso do chamado “socialismo real”-, Berlim assistia a estréia de “As Asas do Desejo” enquanto o relógio do tempo nos preparava para queda iminente do Muro.
Direção de Wim Wenders, roteiro participado com Peter Handke (Nobel de Literatura, 2019) e Richard Reitinger, a película retrata a angústia do anjo Damiel em entender a fragilidade humana, a mortalidade da existência. Nesta incursão, entre o êxtase e a agonia da Vida, o querubim inveja o poder daqueles bilhões de indivíduos que se deparam diariamente com as incertezas do devir, mas que movidos pela paixão podem interceder na tecitura do hoje para preparar o amanhã. Conseguem, desta maneira, influenciar a concepção do processo histórico em trabalhos de amor perdidos.
Damiel deambula melancólico por paisagens marcadas com cicatrizes das Guerras. Escuta e perscruta a urbe, que movida pela esperança de reconstrução grita em silêncio os constrangimentos de uma sociedade perdida no espaço, mas disposta a juntar as razões do seu desencantamento nas réstias do tempo.
O anjo, ser não corpóreo, se reconhece na humanidade como observador passivo e incapaz de cambiar as linhas traçadas pelo destino - que, como rios de tormento, desaguam no vasto oceano da irracionalidade e da tempestiva barbárie. Compreende, ao identificar a precariedade da vida, que a história da humanidade é marcada pela aniquilação de mentes e pela escravidão de corpos.
Sabe, entretanto, que as gentes (o ser físico) ao tomarem consciência da sua submissa condição revoltar-se-ão (de forma lúcida e apaixonada) contra os ditames da mercantilização da Vida. Acredita que os seres humanos, em distinção aos deuses olímpicos, conseguem adquirir consciência no decorrer do luto e, por conseguinte, na reflexão sobre as circunstâncias históricas deste trapézio em que “a rede é distante e o horizonte um braço errante” (Jorge Palma, 2001).
“As Asas do Desejo” reverberam em nossas retinas o germinal da emancipação. Desvela que a revolução social começa no despertar do indivíduo, no seu compromisso ético em reconhecer no Outro a força motriz da sua própria liberdade.
Se cinzenta é a árvore dourada da vida e a morte é a nossa única certeza, parafraseando Goethe, viver é buscar o aperfeiçoamento constante das capacidades e habilidades humanas para dar asas ao desejo de liberdade. Afinal, o anjo é uma criança que “quando criança, caminhava de braços caídos, queria que o ribeiro fosse um rio, o rio uma torrente e este charco, o mar. Não sabia que era criança, tudo para ela tinha alma e todas as almas eram uma só” (Peter Handke).