Com a queda do Império dos Habsburgos e ascensão totalitária, a fragilidade do sistema liberal-burguês se pronunciou sob os escombros da Primeira Guerra Mundial. Não obstante, abriu margem para resgatarmos na essência desta tragédia o que o livro de Karl Kraus, “Os últimos dias da Humanidade” (1922), prescreveu sobre a realização do amanhã solapado pelo progresso que não se pode mais escapar.
Contendo cinco atos, o texto marcou a importância do teatro épico para nos auxiliar a compreender as contradições de um sistema fundamentado na “banalidade do mal”. Por exemplo, o primeiro Ato, cena 1, com fina ironia e perspicaz apreensão da alma humana em decadência, apresenta o clamor das massas - um híbrido de convicções patriotas entre “pobres e ricos, velhos e novos, nobres e plebeus” - sobre o desenvolver favorável da Guerra para as tropas austríacas. Isto em conformidade acrítica com os jornais que divulgavam em suas manchetes a infâmia da realidade “desta grande época que agora vem irrompendo”.
Para dissimular, portanto, a desgraça mortífera das trincheiras, nada melhor do que o ovacionar irracional das gentes inflamadas em favor da Aústria, Alemanha e do Neue Freie Presse - o períodico mais popular do período e totalmente enredado ao Poder – pois, “numa época, tão mesquinha perspectiva está fora de questão. Deixe isso para a Die Frackel”.
Fundada por Kraus em 1899, Die Frackel foi a revista que dedicou seus 36 anos de existência para ofuscar - tal como a lanterna de Diogenes na Grécia antiga - as estruturas insólitas do poder e combater jocosamente a sua maior propagadora de mentiras: a imprensa corrompida.
O cenário foi a cidade de Viena,retratada com acuidade ética e estética,como microcosmo social para desvelar a estupidez humana e decantar em rubro o silêncio infame dos absorvidos pela insensatez mercadológica. Deste modo, uma cena recorrente em (quase) todos os atos da peça - intitulada “O otimista e o eterno descontente” - nos estimula a questionar a relação Moral Pública X Vícios Privados dos sequazes envolvidos na contenda através de uma abordagem inelutável. “A ordem externa e interna do mundo alemão é uma capa que não tardará a romper-se. Nesta altura tudo fracassará junto conosco, ombro com ombro” (p.125).
Publicado pela editora Antígona, com tradução e posfácio de António Sousa Ribeiro (professor catedrático da Universidade de Coimbra), a edição em português ainda contém notas imprescindíveis àqueles leitores desejosos em compreender, no sarcasmo dos fatos, porque Karl Kraus escreveu “uma tragédia cujo herói condenado a sucumbir é a humanidade; cujo conflito trágico, o conflito do mundo com a natureza, termina com a morte”. Ide ler, caro leitor.