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04-11-2023        Jornal de Notícias

Nos termos da Constituição da República, designadamente no seu artigo 20.º que trata do “Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva”, a justiça devia ser cega e não é. O Sistema de Justiça Português não trata os cidadãos em pé de igualdade: nem nas condições de acesso; nem na constituição de provas e decisões dos tribunais; nem na comunicação dos seus atores com a sociedade; nem sequer na forma como são tratados os réus em tribunal.

O tribunal onde será julgado o ex-CEO da Altice Armando Pereira decidiu substituir a medida de coação de prisão domiciliária, a que estava sujeito aquele cidadão, por uma caução de 10 milhões de euros. A acusação que pesa sobre esta pessoa envolve mais de uma dezena de crimes de corrupção, ativa e passiva, e suspeita de ter lesado o Estado em muitas dezenas de milhões de euros. A sua presunção de inocência não deve, de qualquer forma, ser posta em causa. O que me faz olhar para este processo são duas outras questões.

Primeira, a medida de coação a aplicar neste caso assenta na verificação de existência de alarme social, de possibilidade de perturbação de inquérito e de destruição de provas. A passagem de prisão domiciliária para pagamento daquela caução assentou na redução de alarme social ou na diminuição dos perigos dos outros dois fatores? Não parece. Então, uma pessoa muito rica tem direito a comprar liberdade?

Segunda, talvez se tenha provado existirem qualidades excecionais neste cidadão, pois, à saída do tribunal, o seu advogado procurou justificar a nova medida com a não existência de qualquer perigo de fuga, invocando tratar-se de uma pessoa que tem “passado”, bom “perfil” e bom “estatuto”. O que significa cada um destes qualificativos? Um banqueiro, um CEO de empresa, um ex-governante ou uma “alta figura” pública com direito a ser tratado por senhor doutor ou por senhor engenheiro (incluindo em pleno tribunal) são portadores naturais de elevadas qualidades humanas? Um cidadão com um honrado passado de trabalho, embora com poucas qualificações formais, como é tratado? E um sem-abrigo, ou um cidadão com pretensos sinais de “indigente”?

Ricardo Salgado era um poderoso que gostava imenso de invocar publicamente a honra e outros valores morais, como intrínsecos à sua personalidade. Manuel Pinho trata o desempenho de altas funções do Estado “abaixo de cão” e com toda a desfaçatez confessa que burlou o Estado (“de forma legal”) recorrendo a offshores. Se um pobre tiver roubado não precisa de confirmar o roubo para ir parar à cadeia.

Os processos complexos e a morosidade, a exorbitância do valor a pagar por taxas de justiça e o facto de o apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento das taxas de justiça, ser atribuído apenas nas situações de carência económica profunda geram profundas desigualdades. Entretanto, os ricos podem contratar advogados cotados no sistema para estudar os processos profundamente. Os defensores oficiosos dos pobres, por muito empenhados que sejam, não têm tempo nem condições para fazerem esse estudo.

Hoje, há imensas violações de direitos dos consumidores, mas como cada pessoa só é penalizada em meia dúzia de euros e lhe ficava caro o recurso à Justiça, as empresas pagam umas multazitas quando denunciadas, mas arrecadam verbas imensas. Um pequeno valor multiplicado por milhares e milhares de casos significa muitos milhões de euros.

A tolerância dos portugueses perante a fragilidade, as incongruências e os erros da Justiça constitui-se como fator de corrosão da democracia.


 
 
pessoas
Manuel Carvalho da Silva



 
temas
democracia    constituição    justiça