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09-10-2023        Público

A conferência do sociólogo alemão Hartmut Rosa neste 11 de outubro para uma assistência reunida em Coimbra (uma conferência que será, afinal, online, por o autor se encontrar com covid-19) justifica uma breve nota sobre alguns dos conceitos centrais deste continuador da Escola de Frankfurt (no primeiro centenário dessa importante corrente filosófica), enquanto convite para a reflexão crítica sobre o mundo em que vivemos: aceleração e ressonância.

Como sabemos, a modernidade ocidental promoveu, desde o século XVIII, um projeto fundado na autonomia do sujeito e numa dinâmica de mudança que era suposto abrir caminho ao progresso e bem-estar geral. Tratou-se de uma “promessa hedonística” em prole da emancipação do indivíduo, resguardado pelas instituições, na sequência de um longo processo de secularização que relegou para segundo plano a velha promessa religiosa da era medieval. Esvaziada a ideia de uma “salvação no Além”, o primado do materialismo venceu os dogmas do passado, oferecendo a racionalidade económica, o pensamento científico e as instituições seculares como os futuros garantes do progresso e da coesão social. Todavia, a dialética entre esse projeto ético-político e a rapidez da mudança levou a uma quebra da promessa inicial, fundada no equilíbrio entre o sentido ético e os valores humanos, por um lado, e no horizonte de uma riqueza material acessível a todos, por outro.

Essa descoincidência já se fazia sentir desde os primórdios da Revolução Industrial, acalentando sucessivos conflitos e lutas sociais à medida que o capitalismo se consolidou. Mas os lemas iluministas e humanistas que inspiraram o modelo europeu sofreram sucessivos golpes, desde a década de setenta, perante sucessivas crises, e sobretudo com o triunfo da globalização neoliberal. Na sua definição abstrata, a sociedade “moderna” caracterizou-se pela “estabilidade dinâmica”, mas na atualidade os ritmos cada vez mais vertiginosos de aceleração, geraram múltiplas linhas de dessincronização:

  • i) dessincronização entre o crescimento e a natureza, o que gera crises ecológicas;
  • ii) dessincronização entre a democracia e o mercado, o que gera o desgaste da democracia;
  • iii) dessincronização entre a velocidade dos mercados financeiros e a economia real, o que gera crises económicas. Paralelamente, no plano subjetivo tornou-se patente a dessincronização entre a psique humana e a aceleração alienante suscitada pela mercadorização geral da vida.

O ritmo da transformação em curso gerou uma disrupção do binómio espaço-tempo cujo equilíbrio era suposto preservar a coesão e o progresso. Daí a noção de “aceleração”, assente em dimensões como individualização, racionalização e diferenciação. Na vida quotidiana, isso traduz-se num jogo entre o “volume de ações” ao dispor dos indivíduos e as “unidades temporais” disponíveis para realizá-las. Segundo Hartmut Rosa, a taxa de aceleração mede-se a partir do desequilíbrio entre a velocidade, isto é, o ritmo imposto pelas exigências da vida e o volume de tempo disponível. Assim, a Modernidade Tardia caracteriza-se pelo desfasamento entre a pressão exigida pelo movimento quantitativo dos campos de ação e o tempo que temos à disposição para a execução dessa exigência.

Por outras palavras, a sensação de “falta de tempo” é reflexo de um desprendimento crescente do indivíduo em relação aos espaços que antes garantiam o sentido de regularidade, previsibilidade e segurança. A voracidade do movimento intensifica a sensação de escassez de tempo perante o aumento das solicitações. Aceleração técnica, aceleração social, aceleração comunicacional e aceleração do ritmo da vida geraram um ciclo imbricado de interconexões entre esses eixos, que variam segundo diferentes contextos históricos (pandemia, guerras, crises financeiras, etc.), culturais, rurais ou urbanos.

Não se trata de pensar o modelo dominante como a “causa” e as pessoas como as “vítimas” da aceleração. A ideia de um aumento da velocidade da mudança exprime-se em múltiplas esferas da vida: «a aceleração dos transportes, da comunicação e da produção influenciaram os sujeitos nas suas auto-relações e nas suas relações para com o mundo e, com isso, os modelos de identidade socialmente relevantes. A identificação com espaços, com parceiros de comunicação fixos, com grupos de referência e com as coisas assume um caráter temporalmente limitado e contingente – o sujeito é forçado a distanciar-se ou emancipar-se dessas referências de forma a poder suportar uma mudança (voluntária ou obrigatória) sem a perda do eu» (H. Rosa, Aceleração. S. Paulo, Ed. Unesp, 2019, p. 206).

Querer fazer tudo mais rápido, reduzir o tempo despendido em cada atividade, parece ser a forma de o sujeito moderno, descrente de uma vida post-mortem, pretender aumentar ou “dobrar” as experiências de vida dentro do tempo de vida na Terra. De facto, a instabilidade e a busca da mobilidade – para perseguir a melhoria de vida, um diploma escolar mais avançado, um emprego melhor, comprar um carro mais sofisticado, etc. – já não são objetivos viáveis numa sociedade meritocrática, mas sim um modo de vida estruturalmente transitório, ilusório e fugaz, onde o que parece estar ao alcance se esvazia e desfaz no ar quando nos aproximamos dele. Enfim, transitoriedade, deslaçamento, desligamento, fluidez, desapego, parecem ser tendências que injetam no sujeito a sensação de “viver num declive escorregadio”, criando a sensação de uma permanente mutação da paisagem social, que nos inibe de fazer escolhas e programar o futuro em face da constante obsessão pela redução do tempo e pela reação à obsolescência.

Após a rutura com a velha promessa de um “progresso” irreversível, a humanidade está sendo empurrada para um ponto de bifurcação histórica onde três grandes forças se opõem: entre aceleração,desaceleração e ressonância:

  • (i) a aceleração revela-se ajustada à lógica económica dominante, devido à obsessão pelo crescimento contínuo e ao primado do poder financeiro, o que conduz a descartar imensos segmentos sociais, deixados para trás;
  • (ii) a desaceleração vem-se tornando uma exigência crescente de diversos movimentos sociais e setores da sociedade civil, animados pela defesa da ecologia, reivindicando modelos alternativos de “bem-viver” pautados pela lentidão e respeito pela natureza;
  • e por fim (iii), o conceito de ressonância oferece-se como o reduto capaz de reconstruir uma ligação entre o sujeito e o mundo, fonte de empatia com o diferente, amplificador da partilha enriquecedora, da redescoberta de nós mesmos através dos ecos dessa vibração com os outros, com a natureza, a arte, a música, a espiritualidade, etc.

Se na música, os sistemas vibratórios, por exemplo, o dedilhar de uma guitarra, conduz outro sistema a oscilar com maior amplitude em frequências específicas, na vida em sociedade, os comportamentos e experiências “ressonantes” são os elos de convergência, os “encontros não-instrumentais transformadores” que “tocam” o indivíduo ou um dado coletivo, prolongando no tempo a relação “vibratória” profunda e transformacional. Não sendo uma receita política, compete aos movimentos emancipatórios e às instituições democráticas promover as condições favoráveis à multiplicação das relações “ressonantes”.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
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