Já diria um célebre crítico do sistema capitalista: se a indústria bélica é o motor do progresso, a guerra é o seu grande mercado. Deste modo, algumas conflagrações são históricas e mantêm-se onipresentes no imaginário popular. Criam tradições e exasperam diferenças que contradizem a essência original das partes envolvidas. É o caso da Guerra dos 100 anos entre Inglaterra e França iniciada no século XIV.
Se no princípio era o verbo, conquistar tornou-se a conjugação dominante. Foi o que o monarca inglês Eduardo III fez ao reivindicar o trono francês após o falecimento do rei Carlos IV (1328). Aproveitando-se de sua herança genealógica, ser neto do rei Felipe “O Belo” e a ausência de herdeiros diretos do finado, exigiu anexar o território francês na sua obsessão por poder.
A guerra deixou retratos em rubro e entre brumas de inúmeras convulsões sociais. Serviu de base para poetas, dramaturgos, escultores e pintores expressarem suas artes. Da mística criada em torno da figura de Joana D´Arc, guerreira francesa canonizada pela igreja católica em 1920, ao heróico Henrique V - eternizado por Shakespeare em peça de teatro homônimo que descreve a vitória inglesa na batalha de Azincourt (1415).
Gostava, não obstante, de resgatar um episódio menos conhecido desta contenda. Eduardo III, em 1347, exigiu dos cidadãos franceses uma permuta de exímio valor para romper o cerco de Calais. Deveriam escolher, entre ricos proprietários e expoentes do governo, seis representantes para entregarem a chave da cidade e serem sacrificados. Em troca a urbe seria poupada da destruição iminente - conforme relatam as crônicas de Jean Froissart.
Para celebrar os 537 anos deste acontecimento, a câmara municipal de Calais solicitou para Auguste Rodin a confecção de uma estátua para homenagear o líder dos seis condenados à morte: Eustache de Saint-Pierre, o mais velho do grupo e o primeiro a se voluntariar. O escultor, entretanto, não se deixou conduzir pela encomenda e seguiu seus instintos poéticos na licença histórica. Resolveu elaborar em bronze uma peça descrevendo não a angústia heróica de um, mas de todos os envolvidos. A pretensão era promover a reflexão ética deste incompreensível ato humanitário em uma sociedade regida por ações compensatórias e rentáveis.
Com “Os burgueses de Calais” (1889), Rodin questiona a demagogia do poder e sutilmente busca resgatar a nossa “ética extraviada”. Sem lideranças hierarquizadas, a sua escultura em composição circular se opõe ao poder uno e desvela o eterno conflito entre a agonia e o êxtase de/para viver. Afinal, se somos aquilo que são as nossas memórias (George Steiner), não há um EU sem NÓS para salvar a humanidade de sua própria destruição.