Para a comunidade académica, “semipresidencialismo” é um sistema em que “existe um presidente eleito por sufrágio directo a par de um governo que é responsável perante o parlamento” (Elgie), modelo que comporta variações sem pôr em causa a sua característica determinante: uma dualidade de poderes entre presidente e governo, ambos detentores de legitimidade electiva própria (Sartori). Este sistema tem na sua matriz um mecanismo de reforço da accountability (responsabilização) horizontal, apanágio da democracia liberal que não se reduz a modalidades de responsabilização vertical periódica por via eleitoral. Portugal adoptou este sistema na Constituição de 1976.
Um sistema político comporta dois elementos: um quadro institucional definido pela Constituição e leis conexas (estabilizado desde 1982); e “convenções” – princípios de actuação que respeitam o quadro institucional e acrescentam normas reputadas como legítimas pela opinião pública, adaptam as regras abstractas a situações concretas do país, e conformam uma cultura política complementar.
A cultura política portuguesa no tocante à Presidência da República é tributária do modo como Mário Soares a definiu. A teoria da tripartição de poderes (Montesquieu) seria desadequada, pois a Presidência não partilharia com o Governo o poder executivo, mas a ideia de “poder moderador” (Constant) permitia legitimar teoricamente uma função não executiva para a Presidência.
A narrativa do “poder moderador” associa-se à ideia do presidente como “independente” dos partidos. Tal é sugerido pela Constituição, ao definir os termos de apresentação das candidaturas ao cargo – mas não imposta. Todos os presidentes civis provêm do universo partidário, mas nenhum exerceu o cargo enquanto líder partidário. No modelo português, o cargo de primeiro-ministro é o mais apetecível para os líderes partidários, e é em torno da luta por esse lugar que gira a vida político-partidária (Jalali). O que não significa que os presidentes não tenham a sua “família política” e uma determinada filiação ideológica. Mas coisa distinta é serem líderes partidários (como em França), o que lhes emprestaria um carácter de alinhamento sistemático e não pontual com os seus partidos. Por isso, o Presidente nem é o chefe da maioria parlamentar, nem o chefe da minoria parlamentar (situação conhecida como “coabitação), mas antes um elemento tendencialmente neutral dada a sua condição de “independente” (Duverger).
Este modelo apresenta flexibilidade não só para leituras pessoais dos presidentes, como para situações objectivas diferenciadas. Diz-se que o papel dos presidentes cresce quando o parlamento está dividido, e que diminui quando o parlamento apresenta uma maioria absoluta monopartidária, havendo uma “geometria variável” na sua matriz. Creio que há um fundo de verdade – mas não uma verdade absoluta.
A decisão de Cavaco Silva de exigir “acordos escritos” à maioria de esquerda em 2015 tornou um parlamento dividido num parlamento com maioria estável – diminuindo a sua margem de actuação. Blanco de Morais apelidou a situação como “semipresidencialismo de assembleia”. Marcelo compreendeu a sua função num tal contexto, e procurou recuperar a convenção que dita que as funções do Presidente não se definem por oposição/apoio sistemático ao Governo, antes seguem uma agenda em que a consciência do Presidente e considerações sobre popularidade e oportunidade das medidas andam a par. E um Governo com elevados índices de aceitação popular não é fácil de contrariar. Por isso se falou na existência de um personagem político especial – Costelo (de Costa+Marcelo), que justificaria o apoio de muitos socialistas ao candidato à reeleição.
Já a maioria absoluta obtida pelo PS em 2022 veio testar a possibilidade de o Presidente manter uma posição semelhante. A noção de equilíbrio do sistema pode ter conduzido Marcelo a tomar maior distanciamento face ao Governo. As dificuldades do novo Governo – guerra na Ucrânia, inflação, percepção de crises nos sectores da habitação, educação e saúde, sequência de “casos e casinhos”– alimentaram um sentimento popular de descrença, acompanhado pelo fulgor da crítica populista que “a classe política é toda igual”. Cresceu assim o campo de actuação do Presidente perante o definhar da popularidade de um Governo maioritário, e simultaneamente com a incompreensível relutância da oposição de direita democrática de se demarcar do radicalismo da extrema-direita. Dupla oportunidade, pois.
A intervenção do Presidente sofreu momentos de desencontro com a opinião pública como nas referências desastradas ao problema da pedofilia na Igreja Católica; ou nos sucessivos vetos à lei da eutanásia, com os quais pretenderia dar um sinal aos católicos mais conservadores de que deixaram de ter a primazia social que Marcelo supunha. Foi no confronto aberto com posições do Governo que Marcelo encontrou novamente caminho para manter um nível elevado de sintonia com a opinião pública. O “caso Galamba” é paradigmático: é esmagador o número de inquiridos em sondagens que considera positiva a sua atitude e negativa a do primeiro-ministro.
Atitudes recentes – como os vetos à lei referente ao tempo de serviço dos professores e agora o veto ao pacote Mais Habitação, justificados com base em discordância política, legalmente prevista – suscitaram vozes críticas e afirmações segundo as quais o Presidente estaria a encetar uma via constitucionalmente polémica e a tentar repartir o poder executivo.
Mesmo um Presidente que defendeu papéis menos interventivos – lembremos o famoso “Deixem-nos trabalhar” com que Cavaco Silva, enquanto primeiro-ministro, procurou esvaziar os poderes presidenciais – acabou a gabar-se de ter deixado as suas impressões digitais em cerca de um terço da legislação que promulgou. Não será caso único. A intervenção – sobretudo discreta – dos presidentes em matéria de promulgações é um dado adquirido.
A linha divisória entre a crítica política fundada no pluralismo institucional e o discurso populista que extravasa para uma rejeição do sistema constitucional nem sempre é nítida. Popularidade à outrance (defendendo p. ex. um acréscimo de despesa pública sem contrapartidas na receita) e atitude populista de “meter tudo no mesmo saco” ou de alinhar em ataques ao poder legítimo por vezes partilham a estrada. Não creio que se possa escamotear esse perigo e admito que Marcelo tenha por vezes permitido a confusão. A crítica a fazer, porém, é de índole política, não institucional: na sua essência, as sucessivas atitudes do Presidente não extravasam o cânone do semipresidencialismo português e das suas convenções.
Porventura haverá quem veja com bons olhos uma evolução parlamentarista do regime e considere essa postura presidencial interventiva como inconveniente. Seria esclarecedor abrir um debate sobre as vantagens comparadas dos diferentes sistemas de governo e, eventualmente, encarar uma revisão constitucional que contemplasse esse aspecto. O próprio sistema semipresidencial convive bem com soluções que ora atribuem mais peso aos presidentes (França) ou uma função mais limitada (Áustria ou República da Irlanda). Até lá, goste-se ou não, a intervenção de Marcelo situa-se maioritariamente no campo da prática de uma autoridade legitimada para exercer accountability horizontal sobre o Governo. Tenho esse princípio como bom.
Nota: em 2015-16, empenhei-me na campanha de Sampaio da Nóvoa; em 2020-21, na de Ana Gomes, o que diz o necessário sobre a minha relação com Marcelo e as suas causas políticas. Nenhuma dessas candidaturas propôs qualquer alteração ao sistema político.